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São Paulo, sábado, 27 de setembro de 2003

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RODAPÉ

Cada pássaro canta melhor em sua árvore genealógica

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

A história da literatura corresponde a um longo processo de desmitologização. Obviamente, não se trata de um fenômeno apenas estético, mas da contrapartida de um processo mais profundo de laicização das sociedades, da perda de seu fundamento religioso.
A força do mito, contudo, sempre reaparece como uma espécie de refúgio para momentos de crise: seu tempo circular redime as catástrofes da história, já que o ciclo ininterrupto de criação e destruição acena com um recomeço após cada desastre.
Vem daí a força do romance "Quando Teresa Brigou com Deus", do chileno Alejandro Jodorowsky, que transforma sua história familiar numa espécie de microcosmo regido por forças primitivas outrora encarnadas por deuses e semideuses.
O livro é uma sucessão de casamentos, raptos, fugas, acasos miraculosos. Mas tais acontecimentos não têm por objetivo (como o teriam em um romance de extração "realista") problematizar a realidade a partir da perspectiva de um herói ou anti-herói. Em Jodorowsky, não há dimensão psicológica ou social. Cada gesto se encaixa numa ordem simbólica: assassinatos, estupros e nascimentos assumem um caráter ritual e serão "justificados" pela série de acontecimentos que provocam, numa cadeia que remonta à árvore genealógica do autor (cujos dois ramos, materno e paterno, estão antes dos capítulos).
Logo no início, aliás, o escritor nos informa que quis transformar sua memória familiar em "lenda histórica", seguindo o mote de Jean Cocteau de que "cada pássaro canta melhor em sua árvore genealógica". E, como as raízes de Jodorowsky remontam às tradições judaicas do Leste Europeu (Ucrânia, Lituânia, Rússia), temos um rico embate entre duas formas de conceber o mundo.
De um lado, o universo fabuloso, de origem greco-oriental, com suas metamorfoses e seu comércio incessante entre deuses e homens -de quem dão mostra os coitos de dimensão titânica e os cataclismas providenciais que pontuam a narrativa.
Do outro, o universo judaico, com seu humor e seus traumas, com seus conflitos entre correntes místicas e ortodoxas e com a ameaça dos "pogroms" (os massacres de aldeias judaicas realizados na Rússia e adjacências). Enfim, um mundo em que Deus está presente e ausente, que segue o fluxo irreversível do tempo, já que o judaísmo, ao lado de cristianismo e islamismo, é uma das três "religiões históricas" em que a experiência terrena é um anfiteatro da eternidade, suplantando a circularidade do mito.
Como as telas de Chagall, enfim, o romance alia o conteúdo especificamente judaico -com personagens históricas como o Gaón de Vilna ou Israel ben Eliezer (criador do chassidismo)- a um elemento mágico para o qual talvez contribua também sua condição de latino-americano e contemporâneo do "boom" da literatura fantástica. Tanto é assim que, na última parte do livro, em que os dois troncos da família se encontram no Chile, ele escreve: "Não sei se as lembranças anteriores ao meu nascimento correspondem à realidade ou são meros sonhos. (...) De qualquer modo, a realidade é a transformação progressiva dos sonhos; não há outro mundo que o onírico".
Além disso, a transmissão, de geração em geração, de objetos imantados pela memória dos antepassados (como pares de botas ou baralhos de Tarô) e a presença do espírito de um Rebe ("rabino", em ídiche) que, como uma espécie de anjo da guarda cômico, é transmitido de pai para filho, dão ao romance um tom picaresco.
Mas há também um doloroso conflito de fundo. Como o título indica, o livro é percorrido por uma rejeição desse Deus onipotente que não evitou a morte de um dos filhos de Teresa (avó do autor). E essa cicatriz familiar, por sua vez, remete a outras omissões divinas na história dos judeus, a maior delas sendo seu silêncio (incompreensível para um crente) diante do Holocausto.
Nesse sentido, a fábula de Jodorowsky é também uma forma de exorcizar o passado, ultrapassando-as por meio da imaginação literária e da invenção de uma mitologia pessoal.


Quando Teresa Brigou com Deus    
Autor: Alejandro Jodorowsky
Tradução: Liliana da Silva Lopes
Editora: Planeta
Quanto: R$ 48 (376 págs.)



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