|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
RODAPÉ
Cada pássaro canta melhor em sua árvore genealógica
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
A história da literatura corresponde a um longo processo de desmitologização. Obviamente, não se trata de um fenômeno apenas estético, mas da
contrapartida de um processo
mais profundo de laicização das
sociedades, da perda de seu fundamento religioso.
A força do mito, contudo, sempre reaparece como uma espécie
de refúgio para momentos de crise: seu tempo circular redime as
catástrofes da história, já que o ciclo ininterrupto de criação e destruição acena com um recomeço
após cada desastre.
Vem daí a força do romance
"Quando Teresa Brigou com
Deus", do chileno Alejandro Jodorowsky, que transforma sua
história familiar numa espécie de
microcosmo regido por forças
primitivas outrora encarnadas
por deuses e semideuses.
O livro é uma sucessão de casamentos, raptos, fugas, acasos miraculosos. Mas tais acontecimentos não têm por objetivo (como o
teriam em um romance de extração "realista") problematizar a
realidade a partir da perspectiva
de um herói ou anti-herói. Em Jodorowsky, não há dimensão psicológica ou social. Cada gesto se
encaixa numa ordem simbólica:
assassinatos, estupros e nascimentos assumem um caráter ritual e serão "justificados" pela série de acontecimentos que provocam, numa cadeia que remonta à
árvore genealógica do autor (cujos dois ramos, materno e paterno, estão antes dos capítulos).
Logo no início, aliás, o escritor
nos informa que quis transformar
sua memória familiar em "lenda
histórica", seguindo o mote de
Jean Cocteau de que "cada pássaro canta melhor em sua árvore genealógica". E, como as raízes de
Jodorowsky remontam às tradições judaicas do Leste Europeu
(Ucrânia, Lituânia, Rússia), temos um rico embate entre duas
formas de conceber o mundo.
De um lado, o universo fabuloso, de origem greco-oriental, com
suas metamorfoses e seu comércio incessante entre deuses e homens -de quem dão mostra os
coitos de dimensão titânica e os
cataclismas providenciais que
pontuam a narrativa.
Do outro, o universo judaico,
com seu humor e seus traumas,
com seus conflitos entre correntes
místicas e ortodoxas e com a
ameaça dos "pogroms" (os massacres de aldeias judaicas realizados na Rússia e adjacências). Enfim, um mundo em que Deus está
presente e ausente, que segue o
fluxo irreversível do tempo, já que
o judaísmo, ao lado de cristianismo e islamismo, é uma das três
"religiões históricas" em que a experiência terrena é um anfiteatro
da eternidade, suplantando a circularidade do mito.
Como as telas de Chagall, enfim,
o romance alia o conteúdo especificamente judaico -com personagens históricas como o Gaón de
Vilna ou Israel ben Eliezer (criador do chassidismo)- a um elemento mágico para o qual talvez
contribua também sua condição
de latino-americano e contemporâneo do "boom" da literatura
fantástica. Tanto é assim que, na
última parte do livro, em que os
dois troncos da família se encontram no Chile, ele escreve: "Não
sei se as lembranças anteriores ao
meu nascimento correspondem à
realidade ou são meros sonhos.
(...) De qualquer modo, a realidade é a transformação progressiva
dos sonhos; não há outro mundo
que o onírico".
Além disso, a transmissão, de
geração em geração, de objetos
imantados pela memória dos antepassados (como pares de botas
ou baralhos de Tarô) e a presença
do espírito de um Rebe ("rabino",
em ídiche) que, como uma espécie de anjo da guarda cômico, é
transmitido de pai para filho, dão
ao romance um tom picaresco.
Mas há também um doloroso
conflito de fundo. Como o título
indica, o livro é percorrido por
uma rejeição desse Deus onipotente que não evitou a morte de
um dos filhos de Teresa (avó do
autor). E essa cicatriz familiar, por
sua vez, remete a outras omissões
divinas na história dos judeus, a
maior delas sendo seu silêncio
(incompreensível para um crente) diante do Holocausto.
Nesse sentido, a fábula de Jodorowsky é também uma forma de
exorcizar o passado, ultrapassando-as por meio da imaginação literária e da invenção de uma mitologia pessoal.
Quando Teresa Brigou com Deus
Autor: Alejandro Jodorowsky
Tradução: Liliana da Silva Lopes
Editora: Planeta
Quanto: R$ 48 (376 págs.)
Texto Anterior: "Mudei a substância física do copo d'água para a do carvalho" Próximo Texto: "Cartas do Pai": Cartas resgatam passado de resistência Índice
|