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"CARTAS DO PAI"
Obra reúne correspondências de Alceu Amoroso Lima com a filha e retrata período entre 1958 e 1968
Cartas resgatam passado de resistência
OSCAR PILAGALLO
ESPECIAL PARA A FOLHA
"O Amoroso Lima está terminando a vida numa aurora." A frase, atribuída a um amigo
de Alceu Amoroso Lima (1893-1983), resume a trajetória intelectual do mais influente pensador
católico do Brasil.
Deslocando-se do reacionarismo para posições progressistas,
Amoroso Lima percorreu um caminho ideológico incomum, que
levou o jovem conservador a se
transformar no velho liberal, que,
depois de 1964, ficaria conhecido
como uma das pedras mais incômodas na bota dos militares.
Amoroso Lima gostou do comentário do amigo. "Bacana,
não?", comentou, ao transcrevê-lo numa carta que agora vem a
público com "Cartas do Pai -De
Alceu Amoroso Lima para sua Filha Madre Maria Teresa".
A obra reúne parte da copiosa
correspondência do escritor endereçada desde 1951 à filha, monja enclausurada no mosteiro beneditino de Santa Maria, em São
Paulo. Madre Maria Teresa, 74, liberou, por enquanto, as cartas escritas entre 1958 e 1968, o período
em que a "aurora" de Amoroso
Lima começou a ganhar nitidez.
Cronista de jornal, inclusive da
Folha, e autor de livros, Amoroso
Lima sempre teve espaço para expor seu pensamento. O autor que
emerge das cartas, portanto, não
surpreende o leitor familiarizado
com seu texto, frequentemente
assinado com o pseudônimo de
Tristão de Athayde.
As cartas a Tuca -apelido familiar da madre- valem mais
pelo registro intimista do homem
público. Ouve-se, nas entrelinhas,
o pai saudoso que quer, com a
correspondência, manter o vínculo com a filha, tirada do convívio
familiar aos 22 anos.
As circunstâncias em que os
missivistas se encontravam -o
pai girando o mundo, a filha entre
quatro paredes- fazem de "Cartas do Pai" um painel de época. A
destinatária de então e o leitor de
hoje vêem o mundo através das
lentes do humanista que, entre
outras reações, se alegra com o
papado de João 23 (1958-1963) e
se entristece com o assassinato de
John Kennedy (1917-1963).
É o Brasil, no entanto, o foco
principal de sua atenção. Sistematicamente na oposição, o escritor
não perdoa nenhum dos cinco
presidentes do período em que as
cartas foram escritas.
O primeiro deles, Juscelino Kubitscheck (1902-1976), não seria
tão popular hoje se dependesse de
Amoroso Lima. Em 1960, recebeu
esta avaliação: "O povo é naturalmente carnavalesco, e o JK compreendeu isso muito bem, de modo que está governando carnavalescamente, com dinheiro falso
que dá impressão de verdadeiro,
porque algumas obras visíveis se
têm feito por aí com ele".
Quanto a Jânio Quadros (1917-1992), embora não desaprovasse
sua política, Amoroso Lima foi
profético em carta de março de
1961 (cinco meses antes da renúncia): "O modo exageradamente
personalista como está agindo
poderá levar-nos a más consequências, pela hipertrofia do poder pessoal, que sempre levou os
governos à ruína".
Escritas em cima do fato, as cartas refletem a primeira reação,
ainda sem a peneira da história.
Natural, portanto, que algumas
análises, em retrospecto, se mostrem equivocadas.
É o caso do golpe continuísta de
João Goulart (1918-76)- hipótese com que Amoroso Lima trabalhou até o último minuto antes da
queda do presidente-, que, como se sabe, não se concretizou.
Ainda assim, vive-se, a partir do
texto, a experiência de uma geração que presenciou o início do regime militar. As nuances do discurso radical, os interesses pessoais travestidos em arroubos patrióticos, as mesquinharias dos ricos, são aspectos que permeiam o
cotidiano e que muitas vezes aparecem diluídos nos livros de história. É nessa zona cinzenta, mescla de reflexão política e crítica de
costumes, que se situa essa espécie de diário.
Embora não tenha, pela própria
natureza, um eixo central, o livro
se concentra em 1964 e seus desdobramentos. Quando se diz que
Amoroso Lima foi um crítico de
primeira hora do regime militar,
não se trata de força de expressão.
Em carta datada do dia seguinte
ao golpe, escreveu: "É apenas vitória do golpismo direitista para
tranquilidade dos proprietários,
latifundiários, udenistas e mulheres histéricas" (referência às
"boas senhoras psicopatizadas"
que haviam organizado as Marchas da Família).
O livro pára em 1968, após a edição do AI-5. Mais uma vez, Amoroso Lima reagiu de pronto: "Tenho vergonha de estar solto numa
hora destas, pois são os melhores
que estão presos de fato, embora
todos nós estejamos presos cá fora". Foi com essa voz que os militares não puderam censurar, tal a
autoridade moral de seu dono
que Lima se transformou em importante peça de resistência civil à
ditadura militar. "Cartas do Pai"
resgata esse passado.
Oscar Pilagallo, 47, é jornalista e autor
do livro "A Aventura do Dinheiro"
Cartas do Pai -De Alceu Amoroso Lima para sua Filha Madre Maria Teresa
Organização: Madre Maria Teresa,
Alceu Amoroso Lima Filho e Silvia
Amoroso Lima Affonso Ferreira
Lançamento: Instituto Moreira Salles
Quanto: R$ 78 (676 págs.)
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