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biblioteca FOLHA
Clássico sobre a luta do indivíduo contra a burocracia moderna, escrito por Franz Kafka, será lançado amanhã
"O Processo" expõe o pesadelo do homem
MAURICIO PULS
DA REDAÇÃO
Mesmo quem não leu "O Processo", de Franz Kafka (1883-1924), sabe alguma coisa sobre a
obra, como revela o adjetivo "kafkiano", incorporado ao senso comum, que "evoca uma atmosfera
de pesadelo, de absurdo, especialmente em um contexto burocrático que escapa a qualquer lógica
ou racionalidade" (Houaiss). O
pesadelo impregna o romance,
escrito em 1914 e editado em 1925.
Na manhã de seu 30º aniversário, um homem é detido por dois
guardas. Vítima de um processo
que nunca lhe é revelado, tem de
enfrentar uma imensa burocracia
judiciária. Na noite da véspera de
seu 31º aniversário, o homem é
executado por dois guardas.
O protagonista do romance, Josef K., é um burocrata de um
grande banco, já parcialmente deformado pela profissão, em luta
contra um mundo ainda mais burocratizado. Não é uma figura
simpática: habituado a mandar,
despreza os subalternos e, cioso
de seu status, repele as ordens que
recebe dos servidores da Justiça.
A rebeldia o opõe aos outros funcionários, meros capachos que
cumprem as ordens sem discutir.
Em contraposição a K., o burocrata exemplar é o torturador, que
rejeita o dinheiro que o executivo
lhe oferece para não espancar dois
guardas: "Não me deixo subornar. Fui empregado para espancar, por isso espanco". O "bom"
empregado nunca questiona sua
missão, apenas trata de realizá-la.
Inflexível, K. recusa todas as
propostas para chegar a um acordo com o tribunal, admitindo sua
culpa. O processo caminha mal:
"Consideram-no culpado", diz o
capelão. "Mas eu não sou culpado. Como é que um ser humano
pode ser culpado?", pergunta K..
"Mas é assim que os culpados costumam falar", retruca o religioso.
Seu crime está inscrito em seus
lábios. "Nossas autoridades não
buscam a culpa na população,
mas, conforme consta na lei, são
atraídas pela culpa e precisam nos
enviar -a nós, guardas. Esta é a
lei", diz o policial. K. alega ignorar
essa lei. "O senhor irá senti-la."
Qual é sua culpa? Kafka não o
diz. Em todo o romance, K. comete uma só falta: a desobediência.
Discute com os guardas, responde ao inspetor, recusa-se a fornecer informações ao juiz. Não reconhece a autoridade dos mais velhos, investe sobre as mulheres
alheias. Daí seu destino trágico. A
desobediência, ensina a Bíblia, é
pior que um crime: é um pecado.
Freud explica que toda civilização pressupõe a repressão dos
instintos: os desejos individuais
devem ser subordinados à promoção do bem comum. Sem o
respeito à autoridade, a sociedade
desapareceria. A civilização é uma
prisão, mas ninguém quer deixá-la: "A senhora não quer ser libertada!", constata K., surpreso.
O tribunal é o superego social.
Contudo a repressão não elimina
o reprimido, apenas o reveste
com uma aparência respeitável.
Em Kafka, toda frase, todo gesto
encerra um sentido oculto. Mesmo os burocratas tratam de obter,
às escondidas, aquilo que eles têm
o dever de coibir. As virtudes públicas escondem vícios privados.
A submissão à autoridade não é
completa, e os homens acabam
desobedecendo. "As pessoas
sempre se rebelam", nota o oficial
de Justiça. Ninguém é inocente.
Por isso o tribunal não admite a
defesa nem é dissuadido: "Um
único carrasco poderia substituir
o tribunal inteiro", diz K.. A vida é
uma espera inútil: o homem nunca alcançará a justiça que almeja.
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