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CRÍTICA/"SE NINGUÉM FALAR DE COISAS INTERESSANTES"
"Câmera" procura sentido no ignorado
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Logo de cara o leitor brasileiro
tem de enfrentar duas dificuldades. Primeiro, a foto da capa: a
esquina de uma rua estreita, escura, onde figuram duas placas de
hotel. Nada a ver com a rua inglesa de subúrbio retratada por Jon
McGregor, escritor incensado pela revista "Granta", no único romance de estréia que entrou na
pré-seleção ao Booker Prize do
ano passado.
Depois, o "interessantes" do título "Se Ninguém Falar de Coisas
Interessantes", tradução imprecisa, que perde a sutileza de "remarkable", do original. "Remarkable"
remete ao nosso "notável", àquilo
que é digno de ser percebido. É a
primeira parte de uma pergunta
feita no romance: "Se ninguém falar de coisas notáveis, como podem ser chamadas de notáveis?".
O subtexto é irônico, pois, embora aluda ao conhecimento das coisas percebidas, o tema da narrativa é o que em geral não notamos,
o que deixamos de ver.
Por isso grande parte do romance se passa num dia único de
verão, um dia no fim do qual uma
tragédia ocorrerá (como somos
informados desde o princípio). A
tragédia, algo notável em si, amplia em retrospecto os detalhes de
um cotidiano chão, que de outra
forma poderiam perder-se: o jogo
de críquete de dois garotos gêmeos, o rapaz tímido platonicamente enamorado de sua vizinha,
os jovens que tentam curar a ressaca da balada da noite anterior.
Mais do que descrever as ações
simples desse grupo de pessoas,
McGregor preocupa-se em sugerir o sentido que haveria por trás
delas, as relações que tacitamente
as conectam. O ponto de vista escolhido nessa parte do livro é o de
uma câmera distanciada, que se
move de um apartamento a outro, de uma casa a outra, procurando flagrar pequenos gestos.
Algo semelhante ao que Hitchcock fez com os vizinhos do fotógrafo vivido por James Stewart,
em "Janela Indiscreta" (54).
Se o tema ligando os seres de
"Janela Indiscreta" são as relações
amorosas (desde a solteirona até
o marido que mata a mulher), o
de "Se Ninguém Falar" são as etapas da vida, estribadas na gestação. Assim, na outra parte do livro, vista em paralelo com a primeira, seguimos as aflições de
uma moça que esteve presente no
dia da tragédia e que, três anos depois, se vê com uma gravidez indesejada.
Observamos então um desenvolvimento pendular, que vem do
título (coisas que se percebem x
coisas impercebidas) e percorre a
narrativa, dividida entre a descrição fotográfica do dia da tragédia
e a história da jovem grávida. No
fundo, é claro que esses dois tempos também se unem, pois a moça é o objeto do amor inconfessado do rapaz tímido, cujo desempenho no desenrolar da tragédia
será crucial.
O movimento pendular, ou bipartido, pode ser localizado em
alguns elementos que se duplicam no texto, o mais evidente dos
quais a presença dos gêmeos. Os
dois gêmeos muçulmanos que jogam críquete se relacionam com o
moço tímido, que (saberemos depois) também tem irmão gêmeo.
Se eles representam um par formado por semelhança, há outros
confrontados pela antítese: o
maior deles o que há entre a vida e
a morte. Essa dicotomia também
se insere na área de estudo do rapaz acanhado. Ele quer se tornar
um "arqueólogo do presente", isto é, alguém que, ao registrar o
presente, trata a vida como as ruínas de uma era fossilizada.
Rigoroso na forma, o texto padece de um travamento, de uma
falta de mobilidade e de vibração,
causada paradoxalmente por seu
próprio virtuosismo técnico. Talvez se trate de uma falha calculada, até pelo fato de ela pressupor
um modo de ler o romance.
Sabemos que algo ominoso vai
ocorrer, algo imbricado nas coisas miúdas (que custamos a enxergar), o que, se nos faz mover
como detetives numa reconstituição antecipada do crime, também
nos alija da pulsão desordenada
da experiência vital. Por trás da vida encapsulada de "Se Ninguém
Falar" ronda a morte, a mesma
sobre a qual se debruça com deleite o fotógrafo engessado de "Janela Indiscreta".
Se Ninguém Falar de Coisas Interessantes
Autor: Jon McGregor
Tradutoras: Ana Puccini Lara e Irene
Maria da Fonseca
Editora: Arx
Quanto: R$ 35 (272 págs.)
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