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São Paulo, sábado, 27 de setembro de 2003

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CRÍTICA/"SE NINGUÉM FALAR DE COISAS INTERESSANTES"

"Câmera" procura sentido no ignorado

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Logo de cara o leitor brasileiro tem de enfrentar duas dificuldades. Primeiro, a foto da capa: a esquina de uma rua estreita, escura, onde figuram duas placas de hotel. Nada a ver com a rua inglesa de subúrbio retratada por Jon McGregor, escritor incensado pela revista "Granta", no único romance de estréia que entrou na pré-seleção ao Booker Prize do ano passado.
Depois, o "interessantes" do título "Se Ninguém Falar de Coisas Interessantes", tradução imprecisa, que perde a sutileza de "remarkable", do original. "Remarkable" remete ao nosso "notável", àquilo que é digno de ser percebido. É a primeira parte de uma pergunta feita no romance: "Se ninguém falar de coisas notáveis, como podem ser chamadas de notáveis?". O subtexto é irônico, pois, embora aluda ao conhecimento das coisas percebidas, o tema da narrativa é o que em geral não notamos, o que deixamos de ver.
Por isso grande parte do romance se passa num dia único de verão, um dia no fim do qual uma tragédia ocorrerá (como somos informados desde o princípio). A tragédia, algo notável em si, amplia em retrospecto os detalhes de um cotidiano chão, que de outra forma poderiam perder-se: o jogo de críquete de dois garotos gêmeos, o rapaz tímido platonicamente enamorado de sua vizinha, os jovens que tentam curar a ressaca da balada da noite anterior.
Mais do que descrever as ações simples desse grupo de pessoas, McGregor preocupa-se em sugerir o sentido que haveria por trás delas, as relações que tacitamente as conectam. O ponto de vista escolhido nessa parte do livro é o de uma câmera distanciada, que se move de um apartamento a outro, de uma casa a outra, procurando flagrar pequenos gestos. Algo semelhante ao que Hitchcock fez com os vizinhos do fotógrafo vivido por James Stewart, em "Janela Indiscreta" (54).
Se o tema ligando os seres de "Janela Indiscreta" são as relações amorosas (desde a solteirona até o marido que mata a mulher), o de "Se Ninguém Falar" são as etapas da vida, estribadas na gestação. Assim, na outra parte do livro, vista em paralelo com a primeira, seguimos as aflições de uma moça que esteve presente no dia da tragédia e que, três anos depois, se vê com uma gravidez indesejada.
Observamos então um desenvolvimento pendular, que vem do título (coisas que se percebem x coisas impercebidas) e percorre a narrativa, dividida entre a descrição fotográfica do dia da tragédia e a história da jovem grávida. No fundo, é claro que esses dois tempos também se unem, pois a moça é o objeto do amor inconfessado do rapaz tímido, cujo desempenho no desenrolar da tragédia será crucial.
O movimento pendular, ou bipartido, pode ser localizado em alguns elementos que se duplicam no texto, o mais evidente dos quais a presença dos gêmeos. Os dois gêmeos muçulmanos que jogam críquete se relacionam com o moço tímido, que (saberemos depois) também tem irmão gêmeo. Se eles representam um par formado por semelhança, há outros confrontados pela antítese: o maior deles o que há entre a vida e a morte. Essa dicotomia também se insere na área de estudo do rapaz acanhado. Ele quer se tornar um "arqueólogo do presente", isto é, alguém que, ao registrar o presente, trata a vida como as ruínas de uma era fossilizada.
Rigoroso na forma, o texto padece de um travamento, de uma falta de mobilidade e de vibração, causada paradoxalmente por seu próprio virtuosismo técnico. Talvez se trate de uma falha calculada, até pelo fato de ela pressupor um modo de ler o romance.
Sabemos que algo ominoso vai ocorrer, algo imbricado nas coisas miúdas (que custamos a enxergar), o que, se nos faz mover como detetives numa reconstituição antecipada do crime, também nos alija da pulsão desordenada da experiência vital. Por trás da vida encapsulada de "Se Ninguém Falar" ronda a morte, a mesma sobre a qual se debruça com deleite o fotógrafo engessado de "Janela Indiscreta".


Se Ninguém Falar de Coisas Interessantes   
Autor: Jon McGregor
Tradutoras: Ana Puccini Lara e Irene Maria da Fonseca
Editora: Arx
Quanto: R$ 35 (272 págs.)



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