São Paulo, terça-feira, 27 de setembro de 2005

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BERNARDO CARVALHO

Consumo e sacrifício

Quem vive numa sociedade capitalista desenvolvida e laica (às vezes nem tão desenvolvida nem tão laica) costuma ficar horrorizado com os relatos sobre os sacrifícios de povos distantes e exóticos, ou desaparecidos, como os astecas e os maias, embora o culto ao consumo, que lhe alimenta o espírito, e boa parte da ciência, que lhe garante a sobrevivência, também dependam de sacrifícios, muitas vezes os mais sangrentos e cruéis.
A diferença é que a morte e o sangue já não integram um teatro mítico e social, já não têm sentido ou função religiosos, ocorrem nos bastidores, foram recalcados para bem longe do espetáculo asséptico da publicidade dos bens de consumo, dos cosméticos e dos medicamentos. Quem vai a uma churrascaria não pensa duas vezes no boi vivo (nem se ajoelha diante dele em agradecimento); quem desfruta do progresso tecnológico e farmacêutico não venera, nos chamados templos da moda, as cobaias de laboratório.
Num belo ensaio escrito há mais de um século (1899) e agora publicado no Brasil pela Cosacnaify, os sociólogos franceses Marcel Mauss e Henri Hubert explicam a função social do sacrifício. Servindo-se sobretudo de exemplos judaicos e hindus, "Sobre o Sacrifício" mostra como o que está em jogo nesses rituais é sempre um movimento e uma comunicação entre o sagrado e o profano, de modo a perpetuar o ciclo da vida pela morte, pela destruição ou pela abnegação. O ritual do sacrifício representa a ressurreição: "É nele que está o princípio de toda vida. (...) Da morte ele tira a vida", escrevem Mauss e Hubert.
O sacrifício é um ritual de intermediação entre o sagrado e o profano. O profano não pode se comunicar diretamente com o sagrado sob o risco de ser aniquilado. Precisa de um intermediário, que é a vítima. A imolação da vítima põe o sagrado e o profano em comunicação indireta, sem deixar que o profano seja destruído pela força do sagrado.
O sacrifício pressupõe a abnegação, mas também um contrato. Os homens fazem uma oferta aos deuses e esperam em troca a sua bênção, em geral a garantia cíclica da prosperidade, da sobrevivência e do bem-estar da comunidade. Para chegar aos deuses, porém, é preciso que o intermediário (oferenda ou vítima, que às vezes é o próprio deus, como no cristianismo) esteja investido de um caráter sagrado. E, para que a força religiosa oferecida aos deuses nessa consagração possa ser restituída aos homens (que muitas vezes consomem os restos da oferenda ou da vítima para completar o ritual, nem que seja de maneira simbólica, como na missa, por meio da hóstia e do vinho), é preciso que o que foi santificado e isolado na esfera inacessível do sagrado volte de alguma forma ao estado profano, resulte em algum bem ou utilidade no mundo dos homens. Só assim se completa o ciclo da perpetuação da vida.
Assim, o profano é submetido a um processo de sacralização, que o torna inacessível à comunidade e que culmina no sacrifício aos deuses (a consagração só se completa com a morte), e em seguida é dessacralizado (profanado) para poder voltar transformado ao uso dos homens. No ritual, o profano busca a fonte da vida no sagrado para em seguida restituí-la ao mundo.
O sacrifício só pode existir num cenário religioso. Daí a dificuldade de percebê-lo nas práticas seculares do capitalismo. Mas, a julgar pelas idéias de Walter Benjamin, retomadas por filósofos como o italiano Giorgio Agamben, que está no Brasil para um ciclo de conferências, o capitalismo seria a religião da modernidade. No capitalismo, haveria uma consagração absoluta e permanente do profano, uma fetichização de todas as coisas. Sacralizar um objeto é paralisá-lo, é tirá-lo da esfera do uso comum para pô-lo num lugar ao qual só se tem acesso por meio de elementos igualmente santificados (o dinheiro, neste caso). "A secularização é uma forma de recalque que deixa intactas as forças que ela se limita a deslocar de um lugar para outro", escreve Agamben, em "Profanazioni" (2005).
Um primeiro passo na direção desse recalque foi dado pela teologia cristã, que transportou o sacrifício do mundo físico para o mundo moral. "O sacrifício redentor do deus perpetua-se na missa diária", escreve Mauss e Hubert. De par com essa sublimação, pouco a pouco o consumo tomou o lugar do sacrifício.
O uso pressupõe a circulação, o coletivo, o acesso; a posse pressupõe o privado, o inacessível. A sociedade capitalista está baseada no culto do consumo como posse, na separação entre "valor de uso" e "valor de troca". Ao serem consumidos, os objetos saem de circulação, são destruídos (sacrificados, consagrados), tornam-se inacessíveis ao uso, tornam-se propriedade.
O culto ao consumo é a consagração da inacessibilidade das coisas (e Agamben cita, como formas dessa consagração, a pornografia - "consumo solitário e desesperado" em que o objeto do desejo torna-se asséptico e inatingível - e o processo de "desnaturação do mundo em museu", quando o sujeito passa a ver e visitar a própria realidade como turista). É o contrário do movimento simbólico que o sacrifício estabelece para restituir ao uso o que antes foi investido e transformado pela força da consagração. Não é por acaso que nem a abnegação nem a profanação fazem parte do repertório de um mundo voltado para o consumo.


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