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BERNARDO CARVALHO
Consumo e sacrifício
Quem vive numa sociedade
capitalista desenvolvida e
laica (às vezes nem tão desenvolvida nem tão laica) costuma ficar
horrorizado com os relatos sobre
os sacrifícios de povos distantes e
exóticos, ou desaparecidos, como
os astecas e os maias, embora o
culto ao consumo, que lhe alimenta o espírito, e boa parte da
ciência, que lhe garante a sobrevivência, também dependam de sacrifícios, muitas vezes os mais
sangrentos e cruéis.
A diferença é que a morte e o
sangue já não integram um teatro mítico e social, já não têm sentido ou função religiosos, ocorrem
nos bastidores, foram recalcados
para bem longe do espetáculo asséptico da publicidade dos bens
de consumo, dos cosméticos e dos
medicamentos. Quem vai a uma
churrascaria não pensa duas vezes no boi vivo (nem se ajoelha
diante dele em agradecimento);
quem desfruta do progresso tecnológico e farmacêutico não venera, nos chamados templos da
moda, as cobaias de laboratório.
Num belo ensaio escrito há
mais de um século (1899) e agora
publicado no Brasil pela Cosacnaify, os sociólogos franceses
Marcel Mauss e Henri Hubert explicam a função social do sacrifício. Servindo-se sobretudo de
exemplos judaicos e hindus, "Sobre o Sacrifício" mostra como o
que está em jogo nesses rituais é
sempre um movimento e uma comunicação entre o sagrado e o
profano, de modo a perpetuar o
ciclo da vida pela morte, pela destruição ou pela abnegação. O ritual do sacrifício representa a ressurreição: "É nele que está o princípio de toda vida. (...) Da morte
ele tira a vida", escrevem Mauss e
Hubert.
O sacrifício é um ritual de intermediação entre o sagrado e o profano. O profano não pode se comunicar diretamente com o sagrado sob o risco de ser aniquilado. Precisa de um intermediário,
que é a vítima. A imolação da vítima põe o sagrado e o profano
em comunicação indireta, sem
deixar que o profano seja destruído pela força do sagrado.
O sacrifício pressupõe a abnegação, mas também um contrato.
Os homens fazem uma oferta aos
deuses e esperam em troca a sua
bênção, em geral a garantia cíclica da prosperidade, da sobrevivência e do bem-estar da comunidade. Para chegar aos deuses, porém, é preciso que o intermediário (oferenda ou vítima, que às
vezes é o próprio deus, como no
cristianismo) esteja investido de
um caráter sagrado. E, para que a
força religiosa oferecida aos deuses nessa consagração possa ser
restituída aos homens (que muitas vezes consomem os restos da
oferenda ou da vítima para completar o ritual, nem que seja de
maneira simbólica, como na missa, por meio da hóstia e do vinho),
é preciso que o que foi santificado
e isolado na esfera inacessível do
sagrado volte de alguma forma
ao estado profano, resulte em algum bem ou utilidade no mundo
dos homens. Só assim se completa
o ciclo da perpetuação da vida.
Assim, o profano é submetido a
um processo de sacralização, que
o torna inacessível à comunidade
e que culmina no sacrifício aos
deuses (a consagração só se completa com a morte), e em seguida
é dessacralizado (profanado) para poder voltar transformado ao
uso dos homens. No ritual, o profano busca a fonte da vida no sagrado para em seguida restituí-la
ao mundo.
O sacrifício só pode existir num
cenário religioso. Daí a dificuldade de percebê-lo nas práticas seculares do capitalismo. Mas, a julgar pelas idéias de Walter Benjamin, retomadas por filósofos como o italiano Giorgio Agamben,
que está no Brasil para um ciclo
de conferências, o capitalismo seria a religião da modernidade.
No capitalismo, haveria uma
consagração absoluta e permanente do profano, uma fetichização de todas as coisas. Sacralizar
um objeto é paralisá-lo, é tirá-lo
da esfera do uso comum para pô-lo num lugar ao qual só se tem
acesso por meio de elementos
igualmente santificados (o dinheiro, neste caso). "A secularização é uma forma de recalque que
deixa intactas as forças que ela se
limita a deslocar de um lugar para outro", escreve Agamben, em
"Profanazioni" (2005).
Um primeiro passo na direção
desse recalque foi dado pela teologia cristã, que transportou o sacrifício do mundo físico para o
mundo moral. "O sacrifício redentor do deus perpetua-se na
missa diária", escreve Mauss e
Hubert. De par com essa sublimação, pouco a pouco o consumo tomou o lugar do sacrifício.
O uso pressupõe a circulação, o
coletivo, o acesso; a posse pressupõe o privado, o inacessível. A sociedade capitalista está baseada
no culto do consumo como posse,
na separação entre "valor de uso"
e "valor de troca". Ao serem consumidos, os objetos saem de circulação, são destruídos (sacrificados, consagrados), tornam-se inacessíveis ao uso, tornam-se propriedade.
O culto ao consumo é a consagração da inacessibilidade das
coisas (e Agamben cita, como formas dessa consagração, a pornografia - "consumo solitário e desesperado" em que o objeto do desejo torna-se asséptico e inatingível - e o processo de "desnaturação do mundo em museu", quando o sujeito passa a ver e visitar a
própria realidade como turista).
É o contrário do movimento simbólico que o sacrifício estabelece
para restituir ao uso o que antes
foi investido e transformado pela
força da consagração. Não é por
acaso que nem a abnegação nem
a profanação fazem parte do repertório de um mundo voltado
para o consumo.
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