São Paulo, sábado, 27 de setembro de 1997.



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Xingu, Scliar, Nutels e o fim da diáspora

ALBERTO DINES
Colunista da Folha

As previsões neste final de milênio lembram a última cena de "Hamlet", com aquele monte de cadáveres no palco. No obituário do apocalipse estão anunciadas as mortes da ficção, dos gêneros literários, do deleite estético, além do fim da história, do Estado, do socialismo, do indivíduo e de tudo o que é impresso, livro e jornal incluídos.
Agora anuncia-se a iminente extinção do silêncio suplantado pelo ruído que envolve gestos, desempenhos, existências e palavras.
Premonições são úteis, funcionam como advertências e desafios. Sobretudo, estimulam o suspiro de alívio quando revelam-se falhas. É o caso de "A Majestade do Xingu", o último livro de Moacyr Scliar (Cia. das Letras), deliciosa contestação ao milenarismo mórbido, em que fica flagrante que a narrativa, a fabulação, a boa prosa, a ficção, os gêneros, a literatura e o livro estão firmes, vivos e bem. Prova de que o catastrofismo prolifera onde falta invenção: meia dúzia de obras, como a de Alberto Manguel ou esta, de Scliar, bastariam para sossegar as aflições das cassandras e os ímpetos dos reinventores da roda.
As primeiras resenhas já levantaram a questão: o livro de Scliar é uma biografia de Noel Nutels, sanitarista e comunista, judeu nascido na Rússia, criado em Pernambuco e que dedicou sua vida aos índios brasileiros? Ou é uma autobiografia de Moacyr Scliar, o escritor-sanitarista, judeu e gaúcho? Pode ser uma engenhosa colagem, em que se combinam realidade e imaginação, a vida de Nutels e a bagagem existencial de Scliar, boa pesquisa e até retalhos literários (caso da aparição do escritor soviético Isaac Babel e o clima de seus contos de "A Cavalaria Vermelha").
Não é a etiqueta que importa, mas o quilate do relato, a capacidade de emocionar com simplicidade, sem truques ou afetação. Dose dupla de humor -do personagem e do escritor- para ressuscitar aquela figura vital que foi Nutels.
Não resisto e conto uma historinha na qual aparecem Nutels e seu parceiro indianista, Darcy Ribeiro. Anos 50, repórter da revista "Visão" (primeira fase), fui encarregado pelo chefe da reportagem Nahum Sirotsky de fazer uma matéria de capa sobre as tribos de índios recém-descobertas. Deveria acompanhar os vôos mensais que o Correio Aéreo Nacional (da FAB) fazia em colaboração com o Serviço de Proteção aos Índios (o SPI), dirigido por Darcy Ribeiro.
O velho Beechcraft da Segunda Guerra durante vinte dias fazia o circuito pelos postos avançados, que começavam no Araguaia e terminavam no Xingu, levando correspondência, mantimentos, medicamentos, missionários e funcionários.
Darcy apresentou-me a Nutels ali em frente, no Vermelhinho, espécie de botequim metido a parisiense, centro do polígono da cultura (ABI, Biblioteca Nacional, Teatro Municipal, Museu de Belas Artes, Ministério da Educação) e onde, no fim da tarde, esbarrava-se em Drummond, Bandeira, Rodrigo Melo Franco, Vinícius, Rubem Braga, Joel Silveira, Elsie Lessa, Lúcio Rangel, Alex Vianny, jovens poetas, atores, pintores, cineastas e, naturalmente, jornalistas.
Lá mesmo, Nutels ministrou-me um cursinho sobre malária e abarrotou-me de Aralen (o remédio da época para combatê-la). Fui incluído no primeiro vôo, completei o circuito sentado na proa envidraçada do bimotor, segui à risca as instruções sobre malária, voltei, revelei as fotos, escrevi a matéria e, pimba, cai doente -tifo. Felizmente já havia o antibiótico específico: além do susto e do febrão prolongado, nada de mais grave. Mas escapei da malária.
Nutels ficou vexado e durante muitos anos sempre que me encontrava colocava as mãos na cabeça e, imitando aquele desespero bem judaico fingia que chorava: "ele não pegou malária, pegou tifo!"
Scliar colheu algumas anedotas sobre Nutels, como aquela dos cinco generais que foram visitá-lo no hospital (estávamos em plena ditadura) e muito gentilmente perguntaram como é que se sentia. Respondeu: "Estou como o Brasil, cercado de militares e na merda..." Morreu pouco depois.
"A Majestade" é o nome da lojinha de tecidos no Bom Retiro onde o Narrador passa uma existência apagada lendo os clássicos e acompanhando a vida trepidante do ídolo de sua infância, Noel Nutels. Quando o filho único deixa-o para morar na França como professor de sociologia e a mulher vai para um kibutz em Israel, pensando em dar algum sentido à sua vida, este anti-herói toma uma decisão heróica: vai seguir os passos de Nutels e, lá no mato, junto dos índios, montará uma loja, "A Majestade do Xingu".
Com esta metáfora na melhor tradição do realismo fantástico, o Narrador, Nutels e Scliar abraçam-se na mesma empreitada: decretar o fim da diáspora. Acabou-se o exílio, a diferença, ser estranho, não pertencer, estar sem ser.
Se há alguma mensagem percorrendo os desvãos deste suave "racconto", ela se enrosca na insinuação de amor por esta terra. Sem patriotadas, preitos à cordialidade, mulatas, samba, carnaval. Opção sem discurso, mas eloquente.
A mesma que levou há dias o rabino Henry Sobel a aceitar a missão de mediar um encontro do governador do Paraná, Jaime Lerner, com o líder do MST, João Pedro Stédile, a pedido deste. Em 1975, recém-chegado dos Estados Unidos, o rabino não titubeou em determinar que o corpo de Vladimir Herzog fosse enterrado como todos os mortos, longe do recanto dos suicidas. Com este breve gesto, sem explicações, liquidou a fantástica versão de suicídio oferecida pelos órgãos de segurança.
Sobel, por não alinhar-se à corrente ortodoxa de Israel (hoje dominante num estado quase teocrático), lá não pode oficiar um casamento ou qualquer outro rito religioso. Mas, no Brasil, representa, como nenhum outro, a moral, a ética e a devoção aos direitos humanos inerentes à cultura judaica. Imagino que também para ele esgotou-se a noção de exílio.
Em compensação, para os oito israelenses de origem marroquina que, há dias, buscaram asilo em território palestino por sentirem-se discriminados na sua terra, voltou a aparecer o fantasma erradio e nômade.
Ao longo deste século, a comunidade judaica esteve dividida em duas correntes políticas, ambas empenhadas em encerrar os dois mil anos de dispersão: os que se aferravam ao "aqui", o lugar em que estivessem (ditos progressistas, em geral filiados à esquerda marxista ou proletária), e os que sonhavam com o "lá", os sionistas que pretendiam a redenção da humanidade a partir do retorno à sua terra, onde se construiria um Estado exemplar. O Holocausto, a criação de Israel e os horrores do stalinismo acabaram com a diferença e a divisão. Que se restabeleceu a partir do assassinato de Itzchak Rabin -a utopia tornou-se "normal".
Dentro de poucos dias, os judeus de todo o mundo comemorarão os Dias Terríveis -o Ano Novo seguido pelos dez dias de penitência até o Dia do Perdão. Ocasião para refletir sobre tantas e tão estranhas mutações que o fanatismo, o clericalismo, a globalização e a tecnologia não resolveram.
Fico com o Narrador de Scliar, com o próprio Scliar, com Sobel. Fico com Nutels que em criança assistia cossacos queimando a barba dos judeus e, para se curar, abarracou-se no Brasil central junto daqueles que eram chamados de selvagens. Agora, graças a esta inspirada fábula, Noel retorna com a mesma alegria de viver. Reconheço-o: fingindo desespero, mas feliz da vida, continua a me gozar -"ele não pegou malária, pegou tifo!" Se a dor e a doença são inevitáveis, graças a ele, escolhi certo.



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