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Xingu, Scliar, Nutels e o fim da diáspora
ALBERTO DINES
Colunista da Folha
As previsões neste final de
milênio lembram a última cena de "Hamlet", com aquele
monte de cadáveres no palco.
No obituário do apocalipse estão anunciadas as mortes da
ficção, dos gêneros literários,
do deleite estético, além do fim
da história, do Estado, do socialismo, do indivíduo e de tudo o que é impresso, livro e jornal incluídos.
Agora anuncia-se a iminente
extinção do silêncio suplantado pelo ruído que envolve gestos, desempenhos, existências e
palavras.
Premonições são úteis, funcionam como advertências e
desafios. Sobretudo, estimulam o suspiro de alívio quando
revelam-se falhas. É o caso de
"A Majestade do Xingu", o último livro de Moacyr Scliar
(Cia. das Letras), deliciosa
contestação ao milenarismo
mórbido, em que fica flagrante
que a narrativa, a fabulação, a
boa prosa, a ficção, os gêneros,
a literatura e o livro estão firmes, vivos e bem. Prova de que
o catastrofismo prolifera onde
falta invenção: meia dúzia de
obras, como a de Alberto Manguel ou esta, de Scliar, bastariam para sossegar as aflições
das cassandras e os ímpetos
dos reinventores da roda.
As primeiras resenhas já levantaram a questão: o livro de
Scliar é uma biografia de Noel
Nutels, sanitarista e comunista, judeu nascido na Rússia,
criado em Pernambuco e que
dedicou sua vida aos índios
brasileiros? Ou é uma autobiografia de Moacyr Scliar, o escritor-sanitarista, judeu e gaúcho? Pode ser uma engenhosa
colagem, em que se combinam
realidade e imaginação, a vida
de Nutels e a bagagem existencial de Scliar, boa pesquisa e
até retalhos literários (caso da
aparição do escritor soviético
Isaac Babel e o clima de seus
contos de "A Cavalaria Vermelha").
Não é a etiqueta que importa, mas o quilate do relato, a
capacidade de emocionar com
simplicidade, sem truques ou
afetação. Dose dupla de humor
-do personagem e do escritor- para ressuscitar aquela
figura vital que foi Nutels.
Não resisto e conto uma historinha na qual aparecem Nutels e seu parceiro indianista,
Darcy Ribeiro. Anos 50, repórter da revista "Visão" (primeira fase), fui encarregado pelo
chefe da reportagem Nahum
Sirotsky de fazer uma matéria
de capa sobre as tribos de índios recém-descobertas. Deveria acompanhar os vôos mensais que o Correio Aéreo Nacional (da FAB) fazia em colaboração com o Serviço de Proteção aos Índios (o SPI), dirigido por Darcy Ribeiro.
O velho Beechcraft da Segunda Guerra durante vinte dias
fazia o circuito pelos postos
avançados, que começavam no
Araguaia e terminavam no
Xingu, levando correspondência, mantimentos, medicamentos, missionários e funcionários.
Darcy apresentou-me a Nutels ali em frente, no Vermelhinho, espécie de botequim metido a parisiense, centro do polígono da cultura (ABI, Biblioteca Nacional, Teatro Municipal, Museu de Belas Artes, Ministério da Educação) e onde,
no fim da tarde, esbarrava-se
em Drummond, Bandeira, Rodrigo Melo Franco, Vinícius,
Rubem Braga, Joel Silveira, Elsie Lessa, Lúcio Rangel, Alex
Vianny, jovens poetas, atores,
pintores, cineastas e, naturalmente, jornalistas.
Lá mesmo, Nutels ministrou-me um cursinho sobre
malária e abarrotou-me de
Aralen (o remédio da época
para combatê-la). Fui incluído
no primeiro vôo, completei o
circuito sentado na proa envidraçada do bimotor, segui à
risca as instruções sobre malária, voltei, revelei as fotos, escrevi a matéria e, pimba, cai
doente -tifo. Felizmente já
havia o antibiótico específico:
além do susto e do febrão prolongado, nada de mais grave.
Mas escapei da malária.
Nutels ficou vexado e durante muitos anos sempre que me
encontrava colocava as mãos
na cabeça e, imitando aquele
desespero bem judaico fingia
que chorava: "ele não pegou
malária, pegou tifo!"
Scliar colheu algumas anedotas sobre Nutels, como aquela dos cinco generais que foram visitá-lo no hospital (estávamos em plena ditadura) e
muito gentilmente perguntaram como é que se sentia. Respondeu: "Estou como o Brasil,
cercado de militares e na merda..." Morreu pouco depois.
"A Majestade" é o nome da
lojinha de tecidos no Bom Retiro onde o Narrador passa
uma existência apagada lendo
os clássicos e acompanhando a
vida trepidante do ídolo de sua
infância, Noel Nutels. Quando
o filho único deixa-o para morar na França como professor
de sociologia e a mulher vai
para um kibutz em Israel, pensando em dar algum sentido à
sua vida, este anti-herói toma
uma decisão heróica: vai seguir os passos de Nutels e, lá no
mato, junto dos índios, montará uma loja, "A Majestade do
Xingu".
Com esta metáfora na melhor tradição do realismo fantástico, o Narrador, Nutels e
Scliar abraçam-se na mesma
empreitada: decretar o fim da
diáspora. Acabou-se o exílio, a
diferença, ser estranho, não
pertencer, estar sem ser.
Se há alguma mensagem percorrendo os desvãos deste suave "racconto", ela se enrosca
na insinuação de amor por esta terra. Sem patriotadas, preitos à cordialidade, mulatas,
samba, carnaval. Opção sem
discurso, mas eloquente.
A mesma que levou há dias o
rabino Henry Sobel a aceitar a
missão de mediar um encontro
do governador do Paraná, Jaime Lerner, com o líder do
MST, João Pedro Stédile, a pedido deste. Em 1975, recém-chegado dos Estados Unidos, o rabino não titubeou em
determinar que o corpo de
Vladimir Herzog fosse enterrado como todos os mortos, longe
do recanto dos suicidas. Com
este breve gesto, sem explicações, liquidou a fantástica versão de suicídio oferecida pelos
órgãos de segurança.
Sobel, por não alinhar-se à
corrente ortodoxa de Israel
(hoje dominante num estado
quase teocrático), lá não pode
oficiar um casamento ou qualquer outro rito religioso. Mas,
no Brasil, representa, como nenhum outro, a moral, a ética e
a devoção aos direitos humanos inerentes à cultura judaica. Imagino que também para
ele esgotou-se a noção de exílio.
Em compensação, para os oito israelenses de origem marroquina que, há dias, buscaram asilo em território palestino por sentirem-se discriminados na sua terra, voltou a aparecer o fantasma erradio e nômade.
Ao longo deste século, a comunidade judaica esteve dividida em duas correntes políticas, ambas empenhadas em
encerrar os dois mil anos de
dispersão: os que se aferravam
ao "aqui", o lugar em que estivessem (ditos progressistas, em
geral filiados à esquerda marxista ou proletária), e os que
sonhavam com o "lá", os sionistas que pretendiam a redenção da humanidade a partir do retorno à sua terra, onde
se construiria um Estado
exemplar. O Holocausto, a
criação de Israel e os horrores
do stalinismo acabaram com a
diferença e a divisão. Que se
restabeleceu a partir do assassinato de Itzchak Rabin -a
utopia tornou-se "normal".
Dentro de poucos dias, os judeus de todo o mundo comemorarão os Dias Terríveis -o
Ano Novo seguido pelos dez
dias de penitência até o Dia do
Perdão. Ocasião para refletir
sobre tantas e tão estranhas
mutações que o fanatismo, o
clericalismo, a globalização e a
tecnologia não resolveram.
Fico com o Narrador de
Scliar, com o próprio Scliar,
com Sobel. Fico com Nutels
que em criança assistia cossacos queimando a barba dos judeus e, para se curar, abarracou-se no Brasil central junto
daqueles que eram chamados
de selvagens. Agora, graças a
esta inspirada fábula, Noel retorna com a mesma alegria de
viver. Reconheço-o: fingindo
desespero, mas feliz da vida,
continua a me gozar -"ele
não pegou malária, pegou tifo!" Se a dor e a doença são
inevitáveis, graças a ele, escolhi certo.
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