São Paulo, sexta-feira, 27 de outubro de 2000

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"Beatriz Cenci" quer traduzir terror

VALMIR SANTOS
DA REPORTAGEM LOCAL

Para Antonin Artaud (1896-1948), a trajetória de algumas pessoas sintetiza a própria aventura da humanidade ao longo dos tempos. É o caso de Beatriz Cenci, a mulher que matou o pai para se vingar do estupro que sofreu do próprio. Ela tinha 22 anos, no século 16, quando foi torturada e executada em praça pública, condenada pelo papa Clement 8º.
A história, muito humana, despertou a atenção do "gênio louco" Artaud, imagem com a qual esse visionário era -e ainda é- frequentemente associado. Ele mesmo chegou a interpretar o papel do conde Cenci, o pai, em "Les Cenci", encenada pela primeira vez em 1935 (um fracasso; houve apenas 17 sessões).
Inédita no Brasil, a montagem estréia hoje no teatro da Funarte, em São Paulo, com a recém-criada companhia Teatro do Incêndio, dirigida por Marcelo Marcus Fonseca.
"É uma peça para uma época de terror e de medo", diz Fonseca, 29. "Assim como a fábrica de crueldade da Inquisição, atualmente há a violência cotidiana, por exemplo, das relações frias de quem se esconde por trás das telas de computador."
Apesar de ser torturada durante um ano, Beatriz morreu sem assumir a culpa; aceitou o crime, mas agiu em nome do que acreditava justo. Apenas seu irmão mais novo sobreviveu à tragédia que se abateu sobre toda a família, cujas terras foram confiscadas pela igreja. Apesar da densidade, do sentimento de tragédia que toma conta dos personagens, Fonseca afirma que o espetáculo é regido "por uma energia de sonho".
O Artaud que o diretor Fonseca pretende retratar em "Beatriz Cenci" é menos o teórico e mais o sujeito de carne e osso que, também ele um ator, legou importantes pistas para o ato orgânico da interpretação.
"Não estamos buscando a teoria, mas o artista que localizava as emoções nos órgãos do corpo. Para Artaud, o medo, por exemplo, é um sentimento que está alojado no rim, enquanto a opressão fica no pulmão", diz Fonseca. "Ele investigava a voz como projeção de imagens, não apenas o texto pelo texto." O personagem Conde Cenci tem uma frase que reflete a ambição da montagem da companhia paulista: "Eis o que distingue a vida do teatro: na vida, fazemos mais e dizemos menos; no teatro, falamos muito para fazer quase nada".
Foram nove meses de ensaios, em parte convertidos em workshops dentro do projeto de residência teatral do Departamento de Formação Cultural, mantido pela Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo.
George Barcat e Caco Mattos fizeram a tradução do texto, com revisão final de Fonseca. Três atores do elenco saíram das oficinas que aconteceram durante o projeto de residência.
Carolina Gonzales interpreta o papel-título em "Beatriz Cenci". O próprio Fonseca faz o Conde Cenci, o pai, também o papel que Artaud defendeu 75 anos atrás. Caco Mattos interpreta o papa Clement 8º.
O ator Marcelo Jackow, que interpreta o papa, também assina o cenário do espetáculo, que evoca o período medieval da humanidade. A iluminação é de Luiz de Almeida Júnior e os figurinos, da Escola de Divinos. O escritor Roberto Piva orientou o grupo sobre tradições e xamanismo.
No currículo, com a extinta companhia Teatro aos Tragos, Fonseca traz montagens como "Baal" (96), de Brecht, "O Balcão" (97), de Genet, e "A Filosofia da Alcova" (98), de Sade. Com a companhia Teatro do Incêndio, igualmente experimental, pretende dar um novo rumo à pesquisa de linguagem cênica.

Peça: Beatriz Cenci
Autor: Antonin Artaud
Direção: Marcelo Marcus Fonseca
Com: Cia. Teatro do Incêndio
Quando: estréia hoje, às 21h; sex. e sáb., às 21h; dom., às 19h. Até 17/12
Onde: Funarte (al. Nothman, 1.058, Santa Cecília, tel. 0/xx/11/3662-5177)
Quanto: R$ 15 e R$ 20




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