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"Beatriz Cenci" quer traduzir terror
VALMIR SANTOS
DA REPORTAGEM LOCAL
Para Antonin Artaud (1896-1948), a trajetória de algumas pessoas sintetiza a própria aventura
da humanidade ao longo dos
tempos. É o caso de Beatriz Cenci,
a mulher que matou o pai para se
vingar do estupro que sofreu do
próprio. Ela tinha 22 anos, no século 16, quando foi torturada e
executada em praça pública, condenada pelo papa Clement 8º.
A história, muito humana, despertou a atenção do "gênio louco"
Artaud, imagem com a qual esse
visionário era -e ainda é- frequentemente associado. Ele mesmo chegou a interpretar o papel
do conde Cenci, o pai, em "Les
Cenci", encenada pela primeira
vez em 1935 (um fracasso; houve
apenas 17 sessões).
Inédita no Brasil, a montagem
estréia hoje no teatro da Funarte,
em São Paulo, com a recém-criada companhia Teatro do Incêndio, dirigida por Marcelo Marcus
Fonseca.
"É uma peça para uma época de
terror e de medo", diz Fonseca,
29. "Assim como a fábrica de
crueldade da Inquisição, atualmente há a violência cotidiana,
por exemplo, das relações frias de
quem se esconde por trás das telas
de computador."
Apesar de ser torturada durante
um ano, Beatriz morreu sem assumir a culpa; aceitou o crime,
mas agiu em nome do que acreditava justo. Apenas seu irmão mais
novo sobreviveu à tragédia que se
abateu sobre toda a família, cujas
terras foram confiscadas pela
igreja. Apesar da densidade, do
sentimento de tragédia que toma
conta dos personagens, Fonseca
afirma que o espetáculo é regido
"por uma energia de sonho".
O Artaud que o diretor Fonseca
pretende retratar em "Beatriz
Cenci" é menos o teórico e mais o
sujeito de carne e osso que, também ele um ator, legou importantes pistas para o ato orgânico da
interpretação.
"Não estamos buscando a teoria, mas o artista que localizava as
emoções nos órgãos do corpo. Para Artaud, o medo, por exemplo, é
um sentimento que está alojado
no rim, enquanto a opressão fica
no pulmão", diz Fonseca. "Ele investigava a voz como projeção de
imagens, não apenas o texto pelo
texto." O personagem Conde
Cenci tem uma frase que reflete a
ambição da montagem da companhia paulista: "Eis o que distingue a vida do teatro: na vida, fazemos mais e dizemos menos; no
teatro, falamos muito para fazer
quase nada".
Foram nove meses de ensaios,
em parte convertidos em workshops dentro do projeto de residência teatral do Departamento
de Formação Cultural, mantido
pela Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo.
George Barcat e Caco Mattos fizeram a tradução do texto, com
revisão final de Fonseca. Três atores do elenco saíram das oficinas
que aconteceram durante o projeto de residência.
Carolina Gonzales interpreta o
papel-título em "Beatriz Cenci".
O próprio Fonseca faz o Conde
Cenci, o pai, também o papel que
Artaud defendeu 75 anos atrás.
Caco Mattos interpreta o papa
Clement 8º.
O ator Marcelo Jackow, que interpreta o papa, também assina o
cenário do espetáculo, que evoca
o período medieval da humanidade. A iluminação é de Luiz de Almeida Júnior e os figurinos, da Escola de Divinos. O escritor Roberto Piva orientou o grupo sobre
tradições e xamanismo.
No currículo, com a extinta
companhia Teatro aos Tragos,
Fonseca traz montagens como
"Baal" (96), de Brecht, "O Balcão"
(97), de Genet, e "A Filosofia da
Alcova" (98), de Sade. Com a
companhia Teatro do Incêndio,
igualmente experimental, pretende dar um novo rumo à pesquisa
de linguagem cênica.
Peça: Beatriz Cenci
Autor: Antonin Artaud
Direção: Marcelo Marcus Fonseca
Com: Cia. Teatro do Incêndio
Quando: estréia hoje, às 21h; sex. e sáb.,
às 21h; dom., às 19h. Até 17/12
Onde: Funarte (al. Nothman, 1.058,
Santa Cecília, tel. 0/xx/11/3662-5177)
Quanto: R$ 15 e R$ 20
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