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MARCELO COELHO
Orlando Silva
Pessoas de outros Estados
reclamam bastante do sotaque paulistano. Quando nos imitam, em programas humorísticos
ou telenovelas, em geral utilizam
um jeito de falar que já não é tão
comum hoje em dia -a pronúncia italianada, ao estilo de Nair
Bello ou Isaurinha Garcia.
Se aquele sotaque lhes parecia
irritante, não sabem o que os espera. Entre os adolescentes, novas
e estranhas pronúncias paulistanas começam a surgir. Os adolescentes da periferia -basta ouvir
um disco de rap- tendem agora
a falar com um "r" bem caipira,
ou talvez americano, que não era
comum na capital. Já as patricinhas -basta ir a um shopping
center- vão eliminando da fala
os sons nasais.
É o famoso caso do "oi gêinti",
mas está ficando pior. Neste sábado, no teatro do Sesc Vila Mariana, uma gravação informava o
público sobre os "equipamentos
de segurança do local". (Qualquer dia escrevo contra esses informes também. Mas uma coisa
de cada vez.) É só um exemplo:
em vez de "equipamentos de segurança", a moça parecia dizer
"ecpamêtius de securâça", abreviando vogais e consoantes, numa espécie de pudor das ressonâncias vocais, como se cada sílaba se tornasse um "bit" de computador.
A palavra ou a frase deixa de se
organizar segundo uma linha
melódica marcada (o que era típico do italianado paulista, aliás)
e passa a seguir uma lógica, não
sei se cabe o termo, "digital": aceleram-se num pisca-pisca rumo à
tônica, que então explode secamente, numa anti-ênfase, sem vibração, como se a voz não desejasse prolongar-se até o ouvido do
interlocutor.
É bem o contrário do que faziam os velhos cantores do rádio
(a peça em cartaz no Sesc Vila
Mariana é "Orlando Silva - O
Cantor das Multidões"). Havia a
tendência a exagerar nos sons nasais e evitar ruído excessivo nas
consoantes, de modo que uma palavra como "sublime" soava como "sub-lin-me", com o "b" amolecido e como se houvesse um til
sobre o "i". Provavelmente, se a
palavra constasse de seu vocabulário, a adolescente paulistana diria "suplîmi", endurecendo e entupindo o som.
Talvez seja por isso que Tuca
Andrada -cujo empenho em ficar parecido com Orlando Silva
não deixa de ser notável- termine arrastando um pouco além da
conta os dós e lás e si-bemóis das
muitas canções que estruturam o
espetáculo. Em outros momentos,
contudo, a fala do ator consegue
atingir as inflexões muito próprias, muito doces, de Orlando
Silva.
Existe um CD, editado pelo próprio Sesc, que reproduz a entrevista do cantor no programa "Ensaio", da TV Cultura. A entrevista é de 1973: Orlando Silva estava
com 58 anos. Seus tempos de ídolo
haviam se encerrado em meados
da década de 40. No disco, entre
uma e outra recordação desses
tempos, ele ainda canta maravilhosamente várias músicas que
todos conhecem.
O mais bonito é que, ao falar,
Orlando Silva parece ter a mesma
flexibilidade, a mesma ondulação, a mesma elegância esguia
que possui quando canta. Em algumas de suas canções, ele joga
com a extrema facilidade de passar do registro grave -aquele vozeirão de cantor antigo que todos
conhecem- para um tom suavíssimo, desanuviado, doce, quase
impúbere; e depois volta para recolher, não se sabe de onde, notas
ainda mais baixas, como se sua
voz fosse um instrumento imaterial; os bordões e as primas, para
lembrar as cordas do violão, pareciam uma coisa só na voz de Orlando Silva.
A entrevista começa com ele dizendo: "Eu nasci no Rio..." - e
essas poucas sílabas são pronunciadas com uma musicalidade
encantadora. Em vários momentos, em especial os que requerem
certa modéstia, Orlando Silva faz
com que a frase rume para o agudo, como se fosse uma pergunta.
"Meu pai tocava violão", diz ele,
"e muito bem" -sua voz se distende nessa hora, bem longe das
empostações da velha guarda.
O cantor lembra episódios da
sua infância. Ia para a escola, levando a sua "merendinha" e junto um "folhetinho" com as modinhas que ele cantava no recreio.
Uma vizinha, dona Noêmia, tinha um pé de amora no quintal.
Ele subia na árvore, ficava cantando e comendo amoras, enquanto a vizinhança, segundo
conta, pedia-lhe essa ou aquela
canção da moda.
É uma vida de subúrbio que,
para nossos padrões, parece quase rural, com crianças de pé no
chão e árvores no quintal. É uma
época, também, em que não havia propriamente adolescência. A
passagem da meninice de calças
curtas para a idade da calça comprida era, ao que consta, bastante
rápida. O crítico Roland Barthes,
analisando uma foto dele mesmo
aos 15 anos, já de paletó e gravata, comenta que, naquele tempo
(1930) os adolescentes "já eram
homenzinhos".
A voz de Orlando Silva, em sua
maleabilidade do grave para o
agudo, parecia manter intacta a
meninice ao lado das formalidades da dicção adulta. A circunstância de ter sido um talento precoce, de ter atingido o auge do sucesso muito cedo, impôs mais tarde um preço muito elevado ao
cantor. Mas talvez seja também a
causa de uma naturalidade, de
uma inocência, de uma pureza de
voz que situam Orlando Silva
muito acima das convenções do
seu tempo.
Voltando aos sotaques: a rapidez socada da pronúncia paulistana não deixa de representar um
mundo de pressa, de dureza, de
oclusão. De timidez também; procura-se fugir das experiências e,
ao mesmo tempo, passar por elas
o mais rápida e intensamente
possível. Por isso a fala se acelera
e perde em sonoridade. Não podemos, é claro, viver em outra época, nem deixar de falar como falamos; mas pelo menos dá para
ouvir quem fala (e canta) de um
jeito melhor.
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