São Paulo, quarta-feira, 27 de outubro de 2004

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MARCELO COELHO

Orlando Silva

Pessoas de outros Estados reclamam bastante do sotaque paulistano. Quando nos imitam, em programas humorísticos ou telenovelas, em geral utilizam um jeito de falar que já não é tão comum hoje em dia -a pronúncia italianada, ao estilo de Nair Bello ou Isaurinha Garcia.
Se aquele sotaque lhes parecia irritante, não sabem o que os espera. Entre os adolescentes, novas e estranhas pronúncias paulistanas começam a surgir. Os adolescentes da periferia -basta ouvir um disco de rap- tendem agora a falar com um "r" bem caipira, ou talvez americano, que não era comum na capital. Já as patricinhas -basta ir a um shopping center- vão eliminando da fala os sons nasais.
É o famoso caso do "oi gêinti", mas está ficando pior. Neste sábado, no teatro do Sesc Vila Mariana, uma gravação informava o público sobre os "equipamentos de segurança do local". (Qualquer dia escrevo contra esses informes também. Mas uma coisa de cada vez.) É só um exemplo: em vez de "equipamentos de segurança", a moça parecia dizer "ecpamêtius de securâça", abreviando vogais e consoantes, numa espécie de pudor das ressonâncias vocais, como se cada sílaba se tornasse um "bit" de computador.
A palavra ou a frase deixa de se organizar segundo uma linha melódica marcada (o que era típico do italianado paulista, aliás) e passa a seguir uma lógica, não sei se cabe o termo, "digital": aceleram-se num pisca-pisca rumo à tônica, que então explode secamente, numa anti-ênfase, sem vibração, como se a voz não desejasse prolongar-se até o ouvido do interlocutor.
É bem o contrário do que faziam os velhos cantores do rádio (a peça em cartaz no Sesc Vila Mariana é "Orlando Silva - O Cantor das Multidões"). Havia a tendência a exagerar nos sons nasais e evitar ruído excessivo nas consoantes, de modo que uma palavra como "sublime" soava como "sub-lin-me", com o "b" amolecido e como se houvesse um til sobre o "i". Provavelmente, se a palavra constasse de seu vocabulário, a adolescente paulistana diria "suplîmi", endurecendo e entupindo o som.
Talvez seja por isso que Tuca Andrada -cujo empenho em ficar parecido com Orlando Silva não deixa de ser notável- termine arrastando um pouco além da conta os dós e lás e si-bemóis das muitas canções que estruturam o espetáculo. Em outros momentos, contudo, a fala do ator consegue atingir as inflexões muito próprias, muito doces, de Orlando Silva.
Existe um CD, editado pelo próprio Sesc, que reproduz a entrevista do cantor no programa "Ensaio", da TV Cultura. A entrevista é de 1973: Orlando Silva estava com 58 anos. Seus tempos de ídolo haviam se encerrado em meados da década de 40. No disco, entre uma e outra recordação desses tempos, ele ainda canta maravilhosamente várias músicas que todos conhecem.
O mais bonito é que, ao falar, Orlando Silva parece ter a mesma flexibilidade, a mesma ondulação, a mesma elegância esguia que possui quando canta. Em algumas de suas canções, ele joga com a extrema facilidade de passar do registro grave -aquele vozeirão de cantor antigo que todos conhecem- para um tom suavíssimo, desanuviado, doce, quase impúbere; e depois volta para recolher, não se sabe de onde, notas ainda mais baixas, como se sua voz fosse um instrumento imaterial; os bordões e as primas, para lembrar as cordas do violão, pareciam uma coisa só na voz de Orlando Silva.
A entrevista começa com ele dizendo: "Eu nasci no Rio..." - e essas poucas sílabas são pronunciadas com uma musicalidade encantadora. Em vários momentos, em especial os que requerem certa modéstia, Orlando Silva faz com que a frase rume para o agudo, como se fosse uma pergunta. "Meu pai tocava violão", diz ele, "e muito bem" -sua voz se distende nessa hora, bem longe das empostações da velha guarda.
O cantor lembra episódios da sua infância. Ia para a escola, levando a sua "merendinha" e junto um "folhetinho" com as modinhas que ele cantava no recreio. Uma vizinha, dona Noêmia, tinha um pé de amora no quintal. Ele subia na árvore, ficava cantando e comendo amoras, enquanto a vizinhança, segundo conta, pedia-lhe essa ou aquela canção da moda.
É uma vida de subúrbio que, para nossos padrões, parece quase rural, com crianças de pé no chão e árvores no quintal. É uma época, também, em que não havia propriamente adolescência. A passagem da meninice de calças curtas para a idade da calça comprida era, ao que consta, bastante rápida. O crítico Roland Barthes, analisando uma foto dele mesmo aos 15 anos, já de paletó e gravata, comenta que, naquele tempo (1930) os adolescentes "já eram homenzinhos".
A voz de Orlando Silva, em sua maleabilidade do grave para o agudo, parecia manter intacta a meninice ao lado das formalidades da dicção adulta. A circunstância de ter sido um talento precoce, de ter atingido o auge do sucesso muito cedo, impôs mais tarde um preço muito elevado ao cantor. Mas talvez seja também a causa de uma naturalidade, de uma inocência, de uma pureza de voz que situam Orlando Silva muito acima das convenções do seu tempo.
Voltando aos sotaques: a rapidez socada da pronúncia paulistana não deixa de representar um mundo de pressa, de dureza, de oclusão. De timidez também; procura-se fugir das experiências e, ao mesmo tempo, passar por elas o mais rápida e intensamente possível. Por isso a fala se acelera e perde em sonoridade. Não podemos, é claro, viver em outra época, nem deixar de falar como falamos; mas pelo menos dá para ouvir quem fala (e canta) de um jeito melhor.


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