São Paulo, quarta-feira, 27 de outubro de 2004

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28ª MOSTRA DE CINEMA

"Terra da Fartura" revela tormento americano após o 11 de Setembro

MARCOS GUTERMAN
EDITOR-ADJUNTO DE MUNDO

A América pós-11 de Setembro é um gigante atormentado. Nele, a histórica vontade de salvar povos em apuros se debate com uma renovada paranóia sobre inimigos invisíveis e muitas vezes inexistentes. Qual personalidade prevalecerá? Eis a pergunta de "Terra da Fartura", filme de Wim Wenders que será exibido hoje na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Lana (Michelle Williams) é o lado samaritano desse conflito. Sua juventude a estimula irresistivelmente a fazer aquilo que julga ser o bem. Ela é a manifestação da mesma inocência que marcou também a juventude da América, quando a nascente potência se julgava no dever moral de resolver as injustiças do mundo, segundo seu ponto de vista messiânico. Lana, bastante religiosa, funciona como a revelação desse destino em tempos sombrios.
Seu desprendimento em relação ao "outro" (os pobres com quem ela lida em Los Angeles, os palestinos com quem travou contato no Oriente Médio) faz Lana significar aquilo que os EUA um dia acreditaram ser: o superconfiante farol da liberdade para o resto do mundo -ou, como pregou Emerson, o teólogo da democracia americana, a materialização da fé na bondade intrínseca da natureza humana.
Essa convicção não se abala nem quando Lana se vê diante de um "outro" que a rechaça e pergunta: "Como pode ser amiga de quem você nem sabe o nome?".
O oposto de Lana é Paul (John Diehl), veterano da Guerra do Vietnã que decidiu usar suas habilidades militares para caçar, por conta própria, terroristas muçulmanos que ele imagina estarem por toda parte.
O personagem é a reunião dos estereótipos que retratam a essência americana na era Bush: truculento, demente e insensível. Com tais credenciais, Wenders conduz Paul ao limite do ridículo: o toque de seu celular é o hino dos EUA.
Esse "vingador" do 11 de Setembro é a América hiperpotente, que, no entanto, acredita-se vulnerável como nunca esteve em sua história.
Paul retoma o espírito da Guerra Fria, mas, desta vez, não se trata de combater os comunistas "vampiros de almas", contra quem os EUA podiam usar basicamente a força de seus valores. Nesta nova guerra, a utopia americana, em lugar de se fortalecer para fazer frente ao inimigo, é destroçada em nome do combate ao terror.
Em "Terra da Fartura", Paul está empenhado, até o limite de sua sanidade, em salvar seu país de um inimigo que espreita sobretudo nas ruas mal iluminadas da sua neurose.
Ele teme chegar tarde, não só para evitar o hipotético atentado, como também para se tornar o herói de que a América, em sua opinião, precisa. O frenesi de Paul e o desfecho de sua caçada, responsáveis pelas melhores passagens do filme, são cheios dessa patética urgência americana.
Não por acaso, Paul é tio de Lana. O parentesco os coloca, por assim dizer, no mesmo corpo. Ambos travam uma acidentada negociação que, no fim das contas, os revela mais próximos que distantes um do outro.
O resultado disso é que, no filme de Wenders, a América não é nem Lana nem Paul, mas a soma dos dois, desesperados para conhecer a verdade.


Terra da Fartura
Land of Plenty
   
Produção: EUA, 2004
Direção: Wim Wenders
Quando: hoje, às 22h30, no Unibanco Arteplex 1 (outras sessões dias 30 e 31)



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