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28ª MOSTRA DE CINEMA
"Terra da Fartura" revela tormento
americano após o 11 de Setembro
MARCOS GUTERMAN
EDITOR-ADJUNTO DE MUNDO
A América pós-11 de Setembro é um gigante atormentado. Nele, a histórica vontade de
salvar povos em apuros se debate
com uma renovada paranóia sobre inimigos invisíveis e muitas
vezes inexistentes. Qual personalidade prevalecerá? Eis a pergunta
de "Terra da Fartura", filme de
Wim Wenders que será exibido
hoje na Mostra Internacional de
Cinema de São Paulo.
Lana (Michelle Williams) é o lado samaritano desse conflito. Sua
juventude a estimula irresistivelmente a fazer aquilo que julga ser
o bem. Ela é a manifestação da
mesma inocência que marcou
também a juventude da América,
quando a nascente potência se
julgava no dever moral de resolver as injustiças do mundo, segundo seu ponto de vista messiânico. Lana, bastante religiosa,
funciona como a revelação desse
destino em tempos sombrios.
Seu desprendimento em relação
ao "outro" (os pobres com quem
ela lida em Los Angeles, os palestinos com quem travou contato no
Oriente Médio) faz Lana significar aquilo que os EUA um dia
acreditaram ser: o superconfiante
farol da liberdade para o resto do
mundo -ou, como pregou
Emerson, o teólogo da democracia americana, a materialização
da fé na bondade intrínseca da
natureza humana.
Essa convicção não se abala
nem quando Lana se vê diante de
um "outro" que a rechaça e pergunta: "Como pode ser amiga de
quem você nem sabe o nome?".
O oposto de Lana é Paul (John
Diehl), veterano da Guerra do
Vietnã que decidiu usar suas habilidades militares para caçar, por
conta própria, terroristas muçulmanos que ele imagina estarem
por toda parte.
O personagem é a reunião dos
estereótipos que retratam a essência americana na era Bush: truculento, demente e insensível. Com
tais credenciais, Wenders conduz
Paul ao limite do ridículo: o toque
de seu celular é o hino dos EUA.
Esse "vingador" do 11 de Setembro é a América hiperpotente,
que, no entanto, acredita-se vulnerável como nunca esteve em
sua história.
Paul retoma o espírito da Guerra Fria, mas, desta vez, não se trata
de combater os comunistas
"vampiros de almas", contra
quem os EUA podiam usar basicamente a força de seus valores.
Nesta nova guerra, a utopia americana, em lugar de se fortalecer
para fazer frente ao inimigo, é
destroçada em nome do combate
ao terror.
Em "Terra da Fartura", Paul está empenhado, até o limite de sua
sanidade, em salvar seu país de
um inimigo que espreita sobretudo nas ruas mal iluminadas da
sua neurose.
Ele teme chegar tarde, não só
para evitar o hipotético atentado,
como também para se tornar o
herói de que a América, em sua
opinião, precisa. O frenesi de Paul
e o desfecho de sua caçada, responsáveis pelas melhores passagens do filme, são cheios dessa patética urgência americana.
Não por acaso, Paul é tio de Lana. O parentesco os coloca, por
assim dizer, no mesmo corpo.
Ambos travam uma acidentada
negociação que, no fim das contas, os revela mais próximos que
distantes um do outro.
O resultado disso é que, no filme
de Wenders, a América não é nem
Lana nem Paul, mas a soma dos
dois, desesperados para conhecer
a verdade.
Terra da Fartura
Land of Plenty
Produção: EUA, 2004
Direção: Wim Wenders
Quando: hoje, às 22h30, no Unibanco
Arteplex 1 (outras sessões dias 30 e 31)
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