|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
RESENHA DA SEMANA
O escritor da denegação
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
Quando se fala em Roberto
Arlt (1900-1942), logo se pensa
em alguém que "escreve mal".
A definição é capciosa. Foi com
essa fama pelo menos que o autor do clássico "Los Siete Locos" (1929) e de "Viagem Terrível" (1941), agora lançado no
Brasil pela Iluminuras, acabou
sendo alçado ao panteão da literatura argentina, como fundador, ao lado diametralmente
oposto de Borges, da prosa moderna de ficção em seu país.
No romance "Respiração Artificial" (1980), do também argentino Ricardo Piglia, que não
cansa de render homenagens a
Arlt, atribuindo-lhe o lugar de
mestre e reivindicando para si
o de seu herdeiro literário, há
uma longa discussão entre os
personagens sobre o estilo desse que pode ser considerado o
"Grande Indigno" da literatura
argentina.
Segundo um dos personagens, o estilo bruto de Arlt não
vem da tentativa de cunho nacionalista -e índole muitas
vezes disfarçadamente erudita- de reproduzir uma linguagem popular, como o lunfardo (gíria de Buenos Aires
empregada nos tangos), mas
da leitura de péssimas traduções espanholas de livros estrangeiros, como os romances
de Dostoiévski, publicados em
edições baratas. É essa a sua
principal matéria-prima.
Contra os que defendem Arlt
como um escritor com muito a
dizer, embora desleixado na
forma, um escritor interessante
por seus temas "apesar do seu
estilo", o personagem conclama: "Arlt vem de um lugar que
é totalmente estrangeiro a esse
onde se escreve "bem" e se faz
"estilo" na Argentina. Não há
nada igual ao estilo de Arlt; não
há nada tão agressivo (...). Esse
estilo, formado de conglomerados, de restos, esse estilo alquímico, perverso, marginal,
não passa da transposição verbal, estilística, do tema de seus
romances. O estilo de Arlt é sua
ficção. E a ficção de Arlt é seu
estilo: não há uma coisa sem a
outra".
Em "Viagem Terrível", essa
perversão vem menos de uma
linguagem "agressiva" (não há
nada de chocante ou particularmente incômodo na maneira como Arlt escreve) e mais do
humor e de uma denegação
irônica muito peculiar a esse
autor para quem "escrever
mal" é, no fundo, uma forma
de evitar a "literatura" para
reinventá-la.
O pequeno volume publicado pela Iluminuras reúne o
conto, ou novela curta, que lhe
dá título, acompanhado de
duas brevíssimas versões prévias da mesma história e de um
outro conto, "O Traje do Fantasma", excluído da coletânea
"As Feras", anteriormente lançada no Brasil pela mesma editora.
"Viagem Terrível" narra a
"travessia do terror" a que são
submetidos os passageiros de
um navio capturado por um
rodamoinho de cem milhas de
diâmetro no meio do oceano
Pacífico, e o que fazem esses
personagens diante do destino
a que não podem escapar, durante as horas que precedem o
momento final em que o navio
será tragado para as profundezas do oceano. Um microcosmo alegórico.
O humor sarcástico de Arlt se
apraz em derrubar todo romantismo. Diante da fatalidade das fossas submarinas, até o
amor mais profundo desaparece, como aliás todas as outras
convenções. E o mais curioso é
que, entre seres tão estranhos
quanto os humanos, a consciência da morte, cuja constante denegação é uma das características mais marcantes da espécie, acaba provocando o suicídio como forma inusitada e
desesperada de evitá-la.
Tudo em Arlt leva a definir o
homem como o próprio ser da
denegação -que aqui se torna
uma forma cômica, invertida e
inevitável de afirmar o que se
tenta negar. O homem está
condenado, pela sua simples
existência, a afirmar o que tenta negar, a começar pela própria morte.
"O Traje do Fantasma", por
exemplo, é o relato perfeitamente delirante de um sujeito
que, em princípio, acredita poder provar, contra todas as evidências, que não é louco nem
homossexual -e quanto mais
avança na sua narração, mais
se parece com aquilo de que o
acusam e que afirma não ser:
"Foi inútil que tratasse de explicar as razões pelas quais eu
me encontrava completamente
nu na esquina das ruas Florida
e Corrientes às seis da tarde,
com o correspondente espanto
de jovenzinhas e senhoras que
a essa hora passeavam por ali".
Em textos que se propõem a
dizer o que aparentemente não
querem dizer, o contrário do
que estão dizendo, não custa se
prevenir contra eventuais trapaças da inteligência do autor.
Há o risco de reviravoltas.
A surpresa ao final das duas
histórias reunidas neste livro
diz respeito à loucura. Em ambos os textos, a loucura, assim
como a verdade, é traiçoeira.
Ela nunca está onde se espera, e
nunca é tarde para que troque
de lugar. Arlt é o grande escritor da denegação. Não é à toa
que "escreva mal" para "escrever bem".
Avaliação:
Livro: Viagem Terrível
Autor: Roberto Arlt
Tradução: Maria Paula Gurgel
Ribeiro
Lançamento: Iluminuras
Quanto: R$ 21 (126 págs.)
Texto Anterior: Bom humor: Receita de riso de um Confúcio de hospício Próximo Texto: Erudito: "A Voz Humana" está no Municipal em São Paulo Índice
|