São Paulo, Sábado, 27 de Novembro de 1999


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RESENHA DA SEMANA
O escritor da denegação

BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha


Quando se fala em Roberto Arlt (1900-1942), logo se pensa em alguém que "escreve mal". A definição é capciosa. Foi com essa fama pelo menos que o autor do clássico "Los Siete Locos" (1929) e de "Viagem Terrível" (1941), agora lançado no Brasil pela Iluminuras, acabou sendo alçado ao panteão da literatura argentina, como fundador, ao lado diametralmente oposto de Borges, da prosa moderna de ficção em seu país.
No romance "Respiração Artificial" (1980), do também argentino Ricardo Piglia, que não cansa de render homenagens a Arlt, atribuindo-lhe o lugar de mestre e reivindicando para si o de seu herdeiro literário, há uma longa discussão entre os personagens sobre o estilo desse que pode ser considerado o "Grande Indigno" da literatura argentina.
Segundo um dos personagens, o estilo bruto de Arlt não vem da tentativa de cunho nacionalista -e índole muitas vezes disfarçadamente erudita- de reproduzir uma linguagem popular, como o lunfardo (gíria de Buenos Aires empregada nos tangos), mas da leitura de péssimas traduções espanholas de livros estrangeiros, como os romances de Dostoiévski, publicados em edições baratas. É essa a sua principal matéria-prima.
Contra os que defendem Arlt como um escritor com muito a dizer, embora desleixado na forma, um escritor interessante por seus temas "apesar do seu estilo", o personagem conclama: "Arlt vem de um lugar que é totalmente estrangeiro a esse onde se escreve "bem" e se faz "estilo" na Argentina. Não há nada igual ao estilo de Arlt; não há nada tão agressivo (...). Esse estilo, formado de conglomerados, de restos, esse estilo alquímico, perverso, marginal, não passa da transposição verbal, estilística, do tema de seus romances. O estilo de Arlt é sua ficção. E a ficção de Arlt é seu estilo: não há uma coisa sem a outra".
Em "Viagem Terrível", essa perversão vem menos de uma linguagem "agressiva" (não há nada de chocante ou particularmente incômodo na maneira como Arlt escreve) e mais do humor e de uma denegação irônica muito peculiar a esse autor para quem "escrever mal" é, no fundo, uma forma de evitar a "literatura" para reinventá-la.
O pequeno volume publicado pela Iluminuras reúne o conto, ou novela curta, que lhe dá título, acompanhado de duas brevíssimas versões prévias da mesma história e de um outro conto, "O Traje do Fantasma", excluído da coletânea "As Feras", anteriormente lançada no Brasil pela mesma editora.
"Viagem Terrível" narra a "travessia do terror" a que são submetidos os passageiros de um navio capturado por um rodamoinho de cem milhas de diâmetro no meio do oceano Pacífico, e o que fazem esses personagens diante do destino a que não podem escapar, durante as horas que precedem o momento final em que o navio será tragado para as profundezas do oceano. Um microcosmo alegórico.
O humor sarcástico de Arlt se apraz em derrubar todo romantismo. Diante da fatalidade das fossas submarinas, até o amor mais profundo desaparece, como aliás todas as outras convenções. E o mais curioso é que, entre seres tão estranhos quanto os humanos, a consciência da morte, cuja constante denegação é uma das características mais marcantes da espécie, acaba provocando o suicídio como forma inusitada e desesperada de evitá-la.
Tudo em Arlt leva a definir o homem como o próprio ser da denegação -que aqui se torna uma forma cômica, invertida e inevitável de afirmar o que se tenta negar. O homem está condenado, pela sua simples existência, a afirmar o que tenta negar, a começar pela própria morte.
"O Traje do Fantasma", por exemplo, é o relato perfeitamente delirante de um sujeito que, em princípio, acredita poder provar, contra todas as evidências, que não é louco nem homossexual -e quanto mais avança na sua narração, mais se parece com aquilo de que o acusam e que afirma não ser: "Foi inútil que tratasse de explicar as razões pelas quais eu me encontrava completamente nu na esquina das ruas Florida e Corrientes às seis da tarde, com o correspondente espanto de jovenzinhas e senhoras que a essa hora passeavam por ali".
Em textos que se propõem a dizer o que aparentemente não querem dizer, o contrário do que estão dizendo, não custa se prevenir contra eventuais trapaças da inteligência do autor. Há o risco de reviravoltas.
A surpresa ao final das duas histórias reunidas neste livro diz respeito à loucura. Em ambos os textos, a loucura, assim como a verdade, é traiçoeira. Ela nunca está onde se espera, e nunca é tarde para que troque de lugar. Arlt é o grande escritor da denegação. Não é à toa que "escreva mal" para "escrever bem".


Avaliação:     

Livro: Viagem Terrível Autor: Roberto Arlt Tradução: Maria Paula Gurgel Ribeiro Lançamento: Iluminuras Quanto: R$ 21 (126 págs.)


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