São Paulo, sexta, 27 de novembro de 1998

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"O Silêncio' elogia a irresponsabilidade

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

Nos últimos anos, o cinema de Mohsen Makhmalbaf tornou-se bem conhecido no Brasil, não só por conta do trabalho da Mostra Internacional de Cinema de SP, mas por uma identidade de parte do público brasileiro tem com o cineasta, bem mais político do que Abbas Kiarostami, por exemplo.
Com a mesma facilidade, porém, esse trabalho por vezes consegue escapar ao domínio do espectador, como se quisesse se esconder, deixando no ar a pergunta sobre o que o filme quis dizer com isso.
No caso de "O Silêncio" isso acontece, ao narrar as aventuras de Korshid, menino cego que todos os dias se atrasa para chegar ao serviço, pois, no caminho, é desviado por algum som sedutor. Enquanto no trabalho pesa sobre ele a ameaça de demissão, por irresponsabilidade, em casa existe o risco de ser despejado, junto com a mãe, por atrasar o pagamento do aluguel.
Não dá para negar que Makhmalbaf seja um cineasta acima da média, e que a narrativa evite todo melodramatismo barato.
Não dá para negar, também, suas virtudes de colorista, já vistas em outros filmes e reafirmadas, aqui, em diversos momentos. Makhmalbaf consegue dominar uma gama vasta, sem nunca se perder, explorando a sensualidade das cores, assim como -de forma mais discreta- a das mulheres (representadas, no caso, pela garota que acompanha Korshid).
Dito isso, parece que alguma coisa falta desta vez. O menino erra pela cidade, perde-se, sai atrás de belas melodias. Numa de suas aventuras, escuta uma banda tocando e fica sabendo que os instrumentos estão desafinados (ele é o afinador desses instrumentos).
Makhmalbaf evita, por aí, um velho clichê, segundo o qual a deficiência visual seria compensada pela acuidade auditiva. Com efeito, o garoto persegue belas melodias, mas não parece dotado de um ouvido privilegiado.
Em compensação, o que lhe dá a cegueira? Aquilo que menos se espera dela: irresponsabilidade. Não no sentido de algo condenável. Perder-se parece ser a hipótese de exercer a liberdade, errar, vagar.
Mas, ao contrário de tantos trabalhos em que essa irresponsabilidade tem uma finalidade, ou é redimida por um sentido, em "O Silêncio" não há fim nem remissão.
Existe, de maneira tímida, um canto à vida, que se manifesta apesar de seus percalços, na beleza dos sons, na evanescência da música, que some no ar, não acrescenta valor nem utilidade às coisas; mas importa apenas porque existe.
Talvez tenha faltado desta vez a Makhmalbaf a força suficiente para mostrar como os sons -essa coisa que desaparece de nossa vista e ouvido assim que passa- persistem em nossas mentes, intactos, duradouros, eventualmente durante toda uma vida.
Talvez Makhmalbaf tenha sido mais feliz ao falar da permanência das coisas em seu "Gabbeh", digamos, do que agora. Talvez as imagens de "O Silêncio", ao contrário de certas músicas, não tenham o dom de se fazer lembrar. Mas, mesmo que menor, "O Silêncio" está longe de ser um filme capaz de aborrecer o espectador, ou de ser marcado pelo espírito burocrático.
²

Filme: O Silêncio Produção: Irã, 1998 Direção: Mohsen Makhmalbaf Com: Tahmineh Normatova Quando: a partir de hoje, no Espaço Unibanco 2


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