São Paulo, segunda-feira, 28 de fevereiro de 2000


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FERNANDO GABEIRA

Uma versão histórica da piada do português

Mais uma vez os fatos não corresponderam às minhas idéias. Apoiei a luta pela libertação do Timor Leste, entre outras coisas, porque o idioma lá era o português e a independência iria ampliar a comunidade linguística. Descubro, agora, que a nova geração do Timor, exatamente aquela em que se vai basear para construir o novo país, quase não fala português. Os idiomas mais frequentes são o malaio e o inglês.
Em primeiro lugar, quero dizer que descobri isto por meio da imprensa portuguesa, e não da brasileira -que praticamente desistiu de ter uma visão própria sobre os fatos internacionais. Problemas econômicos.
Uma vez que mandamos nosso pelotão para ajudar os australianos, que houve todo esse auê pela independência, valeria a pena alguém dar uma passada por lá e nos descrever o drama do nascimento de um país que não tem língua oficial.
E isso é um problema, pois não se pode fazer o país sem se adotar um idioma. Os portugueses estão mandando professores para lá. Assisti a um debate na TV no qual um dos entrevistados questionava esse movimento de mandar professores. O argumento era o seguinte: se a dinâmica geral da sociedade não se orientar para o idioma português, pouco poderá fazer um pequeno grupo de mestres para alterar o rumo das coisas. Os australianos estão mais bem colocados geograficamente, pela presença de suas tropas lá e, sobretudo, porque falam inglês. Mesmo eles terão dificuldades, pois as novas gerações do Timor não só falam o malaio, elas pensam em malaio.
Gostaria de saber como é que vamos solucionar esse enigma. Principalmente porque após a independência nossa indiferença em relação ao Timor voltou a prevalecer.
Não vivemos intensamente o drama da independência nem estamos interessados no processo de reconstrução, em termos de cobertura de mídia e debate sobre o tema.
A indiferença tem uma certa sabedoria, uma vez que o quadro que nós, os defensores da independência, pintamos estava carregado de um projeto linguístico que está se revelando inviável.
Mas, agora, a vaca já foi para o brejo. Mandamos um pelotão para preservar a paz e precisamos dar alguma resposta aos problemas da reconstrução. Não simplesmente para dizer que nos enganamos de porta, pedir desculpas e cruzar os braços.
No momento, é áspero falar disso no Brasil. Mas sou dos que apostam num investimento maior da mídia para dar uma visão nacional do que se passa no mundo. Temos milhões de estudantes que poderiam potencialmente formar uma base de leitores suficiente para viabilizar uma espécie de consórcio brasileiro para olhar o mundo com os próprios olhos.
O que está se passando no Irã, onde os reformistas tiveram uma grande vitória, merecia uma presença maior no noticiário, inclusive com a presença de um ou mais observadores.
Houve gente que se elegeu de dentro da cadeia, o que revela a força da maré reformista, que pode ter uma grande repercussão em todo o Oriente Médio. E também nas teses de que o islamismo era uma variável ameaçadora e de que um confronto de culturas era inevitável no século 21.
A televisão brasileira tem apresentado documentários sobre o tema. Mesmo na televisão é difícil encontrar o olhar brasileiro. As imagens são de agências internacionais, e os apresentadores falam de Londres, Nova York ou Paris, enfim, dos centros onde nossa atenção está fixada.
Pessoalmente, não posso reclamar. Tenho acesso a mais informações do que posso processar. Além disso, no caso do Timor Leste, assisti a algumas palestras de gente do Itamaraty que foi até lá e conhecia relativamente bem a situação política.
Mas há um certo provincianismo que precisa ser rompido. A saída que vejo é aumentar o potencial econômico da mídia. Há grandes repórteres no Brasil, mas sua capacidade está limitada por causa da escassez de capital. Acho que é preciso deixar entrar, parcialmente, o capital estrangeiro.
Imagino a surpresa com minha conclusão. O grande argumento contra o capital estrangeiro é de que ele vai arrasar mais ainda a cultura brasileira. Tivemos longas discussões sobre isso.
Meu argumento pode parecer simplório, mas é este: se quiserem fazer um programa de música belga no lugar de um programa de música brasileira, a audiência vai cair.
A competição mais desenvolvida abrirá caminho para uma visão brasileira do mundo. No momento, se um líder faz um discurso em português em Angola, ele é reportado em inglês e retraduzido aqui para o português.
Não acho que a cultura brasileira seja um cordeirinho pronto para ser engolido pelo lobo mau. Ela precisa estabelecer um novo pacto com este mundo. E, a partir de seu caminho, inspirar os políticos.



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