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DANÇA
Yoshito Ohno recria o corpo com seu butô
Divulgação
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O dançarino Yoshito Ohno, filho do mestre do butô Kazuo Ohno |
INÊS BOGÉA
especial para a Folha,
em Belo Horizonte
Como é possível dançar depois
de Hiroshima? Para os criadores
do butô, não é possível -mas só
a própria dança tem força para
confrontar essa impossibilidade.
Faz-se necessário, de fato, inventar um novo tipo de dança.
Nascido no ambiente da vanguarda japonesa, no fim dos anos
50, o butô combina dança e teatro, em espetáculos com temas
como nascimento, sexualidade,
inconsciente e morte.
O corpo é esvaziado de referências culturais e se entrega a todo
tipo de metamorfose. Muito influenciado, na origem, pelas
idéias do romancista Yukio Mishima, o butô era também uma
tentativa de resgatar a identidade
japonesa, ameaçada pela crescente ocidentalização.
Yoshito Ohno é um dos maiores expoentes do butô na atualidade. Ainda jovem, participou,
em 1959, do primeiro espetáculo
butô, dirigido pelo pioneiro Tatsumi Hijikata. Desde então trabalha em parceria com seu pai, Kazuo Ohno, outro grande mestre.
Yoshito Ohno esteve em Belo
Horizonte na semana passada,
participando do Ecum 2000 (Encontro Mundial das Artes Cênicas). Em sua palestra -tanto falada quanto dançada-, encantou a platéia discorrendo sobre o
butô, de seu nascimento até hoje.
Em entrevista à Folha, ele falou
sobre a criação de um espetáculo
butô, o erotismo e o corpo do bailarino e a companhia Sankai Juku, que vem a São Paulo em abril.
Folha - O butô, na origem, foi
objeto de escândalo. Cada vez
mais apreciado no Ocidente, como é visto hoje no Japão?
Yoshito Ohno - Na verdade, o
público da época era de familiares
e amigos dos dançarinos, e se escandalizava com o que via. O butô
buscava chegar ao que há de mais
profundo no indivíduo, à essência
humana. E era um período de revolta, de indignação, de protesto,
o que num certo sentido era muito saudável para o indivíduo, que
podia colocar tudo isso no universo do palco. Foi uma grande
mudança na própria expressão
teatral.
Hoje o que se vê nas ruas tem
um grau de realismo ou de agressividade muito maior do que o
que se vê no palco.
Folha - "O butô é um corpo
morto que se mantém desesperadamente de pé", escreveu Hijikata. Como dança um "corpo
morto"?
Ohno - Vou dar um exemplo.
Um lutador de sumô que foi encostado até o canto do ringue e está sendo pressionado, prestes a
cair: esse corpo tem uma atitude.
O corpo de um bailarino é muito
mais flexível, um corpo macio. O
corpo pressionado está à beira do
desespero, um corpo duro, que
não está na sua potencialidade
máxima. Dançar com o "corpo
morto" é dançar com esse corpo
-não um corpo de cadáver.
Folha - Como acontece a criação de um espetáculo butô?
Ohno - Entro na sala de ensaios
sem nada na cabeça, simplesmente vou me mexendo. Esse é o espírito do trabalho, e há muito mais
chance de acontecer algo de interessante assim do que quando você já entra dizendo que vai fazer
isso ou aquilo. Na verdade, não
coreografo. O espetáculo nasce.
Normalmente, leva cerca de sete
anos para nascer.
Folha - Para uma platéia ocidental, chama muito a atenção
o caráter francamente erótico
de alguns espetáculos butô.
Que sentido tem a sexualidade?
Ohno - Alguns anos antes de
Hijikata morrer, ele disse a Kazuo
Ohno que achava que o butô tinha de ter erotismo, mas um erotismo ligado ao que há de mais
profundo no ser humano. A questão é saber se um movimento é vivo ou não. Existe alguma coisa entre duas partes: revelar isso é o
próprio ato erótico.
Folha - O senhor poderia nos
falar de seus novos projetos?
Ohno - Devido ao estado de
saúde de Kazuo, é difícil trabalhar
com ele agora. Mas estamos voltando a ouvir nossos discos antigos; pode ser, então, que encontre
alguma coisa que não tinha encontrado antes. Recentemente
lancei o livro "Kazuo Ohno - O
Alimento do Espírito" (sem previsão de lançamento em português). Ele ensina o que é o butô,
quem é Kazuo Ohno e a importância da dança clássica japonesa.
Folha - O butô não é uma técnica de dança, mas uma concepção de espetáculo. Então como
se ensina butô? É possível imaginar companhias de butô espalhadas pelo mundo?
Ohno - O butô é uma arte que
integra muitos elementos. Não se
pode separar as várias influências
que entram aqui com liberdade. E
o butô tem de estar ligado à vida
cotidiana, senão perde o sentido.
O butô tem relação com o chão.
Aqui não se dança -se pisa. É o
espírito que tem de ficar de pé. No
início, as pessoas que faziam butô
viviam em lugares onde a neve era
muito intensa, dois metros de neve acumulada, tornando difícil
caminhar. Na Europa e EUA, os
jovens fazem butô só pela forma,
desprezando o que é interno. A
neve de lá só tem 20 cm.
Folha - Cabeças raspadas, o
corpo todo pintado de branco.
Para uns, essa imagem típica é o
corpo neutro genérico; para outros, a alma dos bailarinos, vestida pelo lado de fora. Que uso o
senhor faz dessa maquiagem e
qual é sua interpretação?
Ohno - A maquiagem faz pensar num outro universo. Não é
usada para "maquiar", mas como
instrumento de contraste e revelação. O branco serve para neutralizar a musculatura, como se
fossem os ossos que estivessem
dançando. Depois só os nervos. O
ato da "maquiagem" é uma transferência de quem dança para esse
outro mundo.
Folha - Em abril estará em São
Paulo a Sankai Juku, uma das
mais conhecidas companhias de
butô. Como o senhor descreveria o trabalho deles para o espectador brasileiro?
Ohno - Da geração seguinte à
minha, a Sankai Juku tem uma
coisa que eu não tenho: o senso de
espetáculo, de efeitos, menos voltado para o sentido do que para as
percepções e sensações. Eles trabalham num outro plano, diferente do nosso, porque o butô,
para nós, é uma coisa densa, meio
oculta, debaixo da terra. A Sankai
Juku trabalha um universo mais
"clean", busca harmonias plásticas do cenário e do corpo do intérprete.
Mas o corpo envelhece -e então como fica? O que acontece
com esse corpo bonito que vai envelhecendo? Isto é algo que eu
gostaria de acompanhar.
Folha - Até que ponto um brasileiro pode entender o butô?
Ohno - Os japoneses hoje são
um povo estranho. Não sabem
exatamente o que estão fazendo,
mesmo o público de um espetáculo não sabe o que está fazendo.
E não encontra explicações; por
isso sofre. Há uma distância grande entre o teatro e o público.
Vindo ao Brasil recebi uma nova força, um novo sopro, senti
uma energia muito boa, as pessoas aqui vivem e são felizes, têm
alegria de viver. Sinto que o público é muito vivo. Essa sensação reforça a gente e dá vontade de continuar lutando.
Inês Bogéa é bailarina do Grupo Corpo
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