São Paulo, sexta-feira, 28 de maio de 2004

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ERIKA PALOMINO

MADONNA SE REINVENTA PARA NOVA TURNÊ

Para todos os que seguiram com Madonna em seus últimos 20 anos, essa "Re-Invention Tour" é bem peculiar. No meu caso, mais ainda: voltei a Los Angeles, onde o show começou na última segunda-feira, justamente dez anos depois de vir aqui com o objetivo de entrevistá-la.
Por conta dessas viradas malucas que a vida dá, desta vez me vi frente a frente com ela de novo e tive a oportunidade única de assistir não apenas à estréia em si (superbem localizada, na fila 6; desculpe!), mas também ao ensaio geral do espetáculo, o último antes da grande noite. Vi Madonna com sua família, filhos, amigos próximos, assessores especiais, técnicos, bailarinos, músicos.
Vi uma Madonna bem diferente, mais calma, mais madura mesmo (ela agora tem 45 anos, mas continua tão bela e ainda mais bem cuidada do que há uma década). Agora é mãe de duas crianças (lindas, por sinal, e Lourdes é a cara dela quando jovem e morena), tem um marido inglês, converteu-se à cabala, tornou-se extremamente religiosa e encaretou.
Ao batizar sua turnê de "Re-Invention", Madonna está comunicando isso ao mundo. Claro, sempre se soube das habilidades camaleônicas da cantora, mudando de look e constantemente avançando em suas convicções.
Seu público e o planeta foram testemunhando seu amadurecimento artístico e pessoal. Ainda que muitos não gostem de sua música, é inegável seu papel como uma das antenas da grande massa, uma das figuras mais importantes do século 20, em termos de comportamento e referência.
Isso não é pouco. E não deve ser fácil de segurar. Manter sua relevância por tanto tempo é algo grande, para grandes talentos. "Re-Invention" tem cara de retrospectiva, com pitadas dessa nova consciência da cantora, aparentemente preocupada com o mundo. Se ela agora rola no chão do palco, não é mais vestida de noiva, como em "Like a Virgin", em 84 no VMA, mas simulando um exercício de guerra em "American Life". A saia kilt da estação é bem abaixo do joelho, mais comprida até do que o uniforme do tocador de gaita de fole que a acompanha na dancinha fofa de "Into the Groove". Madonna reivindica o direito de se reinventar.

SHOW É DEDICADO AOS FÃS DA CANTORA
O show é para os fãs. Afinal, quem não pensou que essa pode ser a última turnê da cantora? Os melhores momentos são os mais hedonistas. "Vogue" abre o show, com Madonna surgindo de baixo, com corset de brocados de Christian Lacroix, tendo ao fundo, no telão, as imagens do fotógrafo Steven Klein, do editorial da "W" e de outros settings feitos especialmente para o show.
É o que dá o carimbo de modernidade ao espetáculo. Madonna dança "Vogue" com apurados movimentos de ioga e faz as pessoas irem ao delírio. Os fãs também vão gostar de ouvir "Burning Up", que está no primeiro disco, de 1983. A linda "Deeper and Deeper" ganha versão cabaré, cínica e debochada, um dos momentos mais leves do show.
A seqüência final, com a belíssima balada "Crazy for You", ela dedica justamente aos fãs, que a acompanham "nos últimos 20 anos", seguida de "Music", com direito a telão com megaglobo de espelhos e o diretor musical de todo o espetáculo, o produtor e DJ francês Jacques Lu Cont, do Les Rythmes Digitales, fazendo seu papel ao centro do palco.
Vem depois "Holiday", em versão atualizada, com imagens de bandeiras de toda parte do mundo, incluindo a do Brasil. Todos dançam e caminham sobre estruturas de metal que baixam mais uma vez sobre a platéia (como em "American Life"). Uma chuva de papel picado consagra Madonna, mais uma vez.
No telão fica a frase "Reinvent Yourself" (na letra criada pelo diretor de arte brasileiro Giovanni Bianco, responsável pela parte gráfica do espetáculo, que agora ganha até dois beijinhos da cantora). Sem o bis, nós ficamos com um trecho de um discurso de Bush. Devidamente vaiado.

SEM SEXO, SOBRA RELIGIOSIDADE
Não deixa de ser estranho ver Madonna tão desprovida de conotações sexuais. Ainda que seus dois primeiros looks no show "Re-Invention" sejam corsets com shortinhos e meia-calça arrastão, tudo é muito comportado. Alem do kilt, outro visual marcante é a calça risca de giz usada com colete, justamente em um dos melhores momentos do show, a deliciosa "Don't Tell me".
"Hanky Panky", a abusada faixa de "Dick Tracy" que fala de uma garota que gosta de levar umas palmadas, recupera a famosa coreografia do lencinho, mas vem com pouco rebolado. Tampouco Madonna beija seus bailarinos/as na boca ou faz as clássicas dancinhas de esfrega-esfrega no palco. O máximo de sensualidade do show da cantora é nos outros, com um vídeo homoerótico que acompanha a bela "Frozen".
Sem sexo, sobrou pieguice, como nas zilhões de imagens de crianças sofrendo, com a fome e com a guerra. Algumas delas fazem parte da ação da associação Spirituality for the Kids, relacionada ao grupo de cabala freqüentado pela cantora.
A questão religiosa sempre foi crucial para Madonna. Nessa "Re-Invention Tour", aparece mais forte do que nunca. Imagens de Cristo na cruz, Nossa Senhora e Jesus -mais escritos em hebraico e referências à cabala- transformam alguns momentos do show em puro pop religioso.

"KABBALISTS DO IT BETTER"
Uma camiseta cabalista -"Kabbalists Do It Better"- substitui a provocativa "Italianos Fazem Melhor", usada há alguns anos. E a carolice alcança seu ápice na sequência "Nothing Fails", "Like a Prayer", "Mother and Father" e, finalmente, uma versão dramática para "Imagine", de John Lennon, com direito a foto dele. "Like a Prayer" é um dos mais fortes momentos do show, numa catarse que lembra as missas gospel.
A parte politizada vem embalada de certa ingenuidade, já que o vocabulário de Madonna sempre foi o da diversão. Ela canta "American Life" com coreografias de guerra e vídeo de crianças sofrendo. Ao final, sósias de Saddam e Bush se beijam, no telão. "Express Yourself", que sempre foi um libelo de liberação sexual, ganha batida militarista, ela e os dançarinos rodopiam espingardas ao ritmo da música. É, os tempos mudaram. Madonna também.

palomino@uol.com.br


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