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"A HISTÓRIA MARAVILHOSA DE PETER SCHLEMIHL"
Chamisso vê as sombras do capital
MAURÍCIO SANTANA DIAS
FREE-LANCE PARA A FOLHA
A idéia do pacto com o diabo
é bem antiga. Provavelmente
surgiu no momento em que alguém teve o primeiro pensamento religioso. Mas a coisa se tornou
mania durante a Idade Média,
quando seduziu e apavorou a
imaginação dos crentes. Foi no
século 16, porém, que o tema se
consolidou, culminando mais tarde no "Fausto" de Goethe. "A História Maravilhosa de Peter Schlemihl", de Adelbert von Chamisso,
se inscreve nessa velha tradição.
Escrita em 1814 para "alegrar os
filhos de um amigo" -segundo o
prefácio de Thomas Mann incluído nessa edição competentemente traduzida e anotada por Marcus Mazzari-, a novela acompanha as desventuras do jovem Peter Schlemihl, que logo no início
do livro concorda em trocar sua
sombra por uma bolsa da fortuna.
As peripécias se seguem em cascata e conduzem o pobre Schlemihl a vagar pelo mundo, levando
a uma vida ao mesmo tempo nababesca e miserável, já que o personagem se vê forçado a fugir incessantemente de todos que, percebendo sua estranha falha, se
horrorizam e o repudiam.
Embora a história de Chamisso
tenha a morfologia de um conto
de fadas, com todos os ingredientes da fábula -pacto com o diabo, riquezas inesgotáveis, o amor
impossível por uma donzela, a
tentativa de recuperar o objeto (o
sujeito) perdido, a peregrinação
pelo mundo numa "bota de sete
léguas" etc.-, ela hoje pode ser lida como uma perfeita alegoria
dos "tempos modernos".
É que o autor escreve já sob o
impacto da primeira revolução
industrial, e sua pequena "fantasia" expressa o crescente mal-estar diante da expansão da sociedade de mercadorias, incipiente
na época. Não é por acaso que a
cena do "pacto" ocorre em Hamburgo, centro do comércio alemão e um dos primeiros pólos industriais do país. Ao contrário do
Fausto goethiano, que se compromete com Mefistófeles em troca
de um saber absoluto, Peter
Schlemihl cede sua sombra em
troca de uma riqueza inesgotável.
Aqui a natureza do acordo é puramente venal, sem a "hybris" humanista da obra de Goethe.
Além disso, não é a alma de
Schlemihl que está em jogo -algo abstrato e situado num plano
metafísico-, mas a projeção física de seu corpo, índice objetivo de
sua materialidade. O aspecto de
mercadoria conferido à sombra é
enfatizado por Chamisso no episódio memorável da transação
comercial: o mefistófeles de casaca se abaixa e enrola como um tapete a mancha escura que se estende no chão, "começando pela
cabeça e indo até os pés".
A caracterização do diabo é das
melhores coisas do livro: um sujeito anônimo, de sobretudo cinza
e modos solícitos, que bem poderia ser um gerente de banco interessado em vender investimentos
rentáveis a seu cliente. Essa relação com o mundo financeiro é estabelecida pelo próprio Chamisso, que escreve no prefácio à edição francesa: "A ciência das finanças instrui-nos suficientemente
sobre a importância do dinheiro;
a da sombra é menos reconhecida
no geral. Meu imprudente amigo
cobiçou o dinheiro, cujo valor ele
conhecia, e não pensou no sólido
[...]. Pensai no sólido!".
Na impossibilidade de reverter
a negociação e recobrar sua humanidade, Schlemihl parte para
inventariar os lugares do mundo
-um pouco como o próprio
Chamisso, que mais tarde se tornaria um importante naturalista,
autor de "Viagem ao Redor do
Mundo". "Conheci a Terra a fundo, melhor do que qualquer homem antes de mim", diz o personagem que, apesar de derrotado,
ostenta um certo orgulho. Ao
vencedor as botas...
Mas o inventário não substitui a
fundamental ausência de sentido
da empreitada: só é possível, agora, descrever as coisas e constatar
o seu irremediável absurdo.
No fim das contas, a danação de
Schlemihl tem algo de cômico. Isso porque, como disse um personagem beckettiano na peça "Fim
de Partida", "nada é mais engraçado que a infelicidade".
A História Maravilhosa de Peter Schlemihl
Autor: Adelbert von Chamisso
Tradução: Marcus Vinicius Mazzari
Posfácio: Thomas Mann
Editora: Estação Liberdade
Quanto: R$ 23 (160 págs.)
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