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São Paulo, sábado, 28 de junho de 2003

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COMENTÁRIO

George Orwell não delatou, mas foi caluniado

RICARDO BONALUME NETO
DA REPORTAGEM LOCAL

O título era assustador: "George Orwell delatou 38 intelectuais", segundo texto do jornal espanhol "El País", republicado na Ilustrada no dia 26 de junho. Ele fez uma lista com gente que considerava comunistas ou assemelhados e que não deveriam ser convidados pelo governo britânico a fazer propaganda anti-soviética, e passou a uma amiga.
"Delatar", diz o dicionário "Aurélio", significa "denunciar, revelar (crime ou delito); acusar". Se o dicionário está correto, o escritor inglês George Orwell, pseudônimo usado por Eric Arthur Blair (1903-1950), não delatou ninguém. Ele teria delatado se a lista tivesse sido feita com o propósito de prejudicar esses 38 intelectuais -caso pudessem ser presos, por exemplo. A lista simplesmente servia de informação óbvia: se você quer alguém para escrever contra o comunismo, não convide esse cara, pois ele é comunista.
"Essas pessoas, cujas simpatias comunistas eram bem conhecidas, não perderiam seus empregos nem seriam prejudicadas. Elas apenas não seriam convidadas pelo governo britânico para escrever propaganda anti-soviética", escreveu um dos biógrafos de Orwell, Jeffrey Meyers, em livro de 2000. A existência da lista não é novidade. Meyers diz que os nomes eram 35, contudo.
A amiga, Celia Paget (nome de casada, Celia Kirwan), trabalhava para um órgão do Ministério das Relações Exteriores britânico criado em 1948 cuja função era "encontrar meios de combater a propaganda comunista, então engajada em uma campanha global e nociva para solapar o poder e a influência ocidentais".
Orwell sugeriu a ela nomes para escrever e também os que não deveriam fazê-lo. Ele próprio, se referindo à lista, disse que "ela não era nada sensacional, e eu não suponho que ela vai dizer aos seus amigos algo que já não saibam".
Não era preciso ser nenhum detetive para saber que não se deveria pedir para um dos listados, o dramaturgo irlandês Bernard Shaw, um notório simpatizante da URSS, para escrever contra o comunismo. Um artigo escrito por Robert Conquest, um importante especialista em União Soviética, publicado no "Times Literary Supplement", resume a história: "A acusação portanto é simplesmente que ele tornou disponível para uma agência de seu próprio governo sua honesta, embora não infalível, opinião".
Nem é preciso lembrar que no clima de 1948, de começo da Guerra Fria, a atitude de Orwell fazia sentido. Ou você estava do lado da URSS, ou você apoiava o Ocidente. Socialista democrático que era, tendo lutado ao lado dos republicanos na Guerra Civil Espanhola e sofrido ali perseguição comunista, Orwell não tinha dúvidas sobre qual lado apoiar.
Nos últimos anos, a vida desse escritor foi esquadrinhada por biógrafos. Muito se descobriu sobre sua desajeitada vida romântica. Mas nada se achou que desabonasse sua honestidade intelectual, apesar de volta e meia alguém tirar alguma "acusação" do baú -por exemplo, que sua utopia negativa, o romance "1984", foi plagiado de "Nós", do russo Yevgeny Zamyatin (quando o próprio Orwell escreveu uma resenha elogiosa desse livro, atitude no mínimo curiosa de um "plagiador"...).
Acusado de "delatar", quando de fato estava apenas informando; Orwell, crítico da maneira como intelectuais totalitários deformavam a linguagem, certamente entenderia o caso.


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