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COMENTÁRIO
George Orwell não delatou, mas foi caluniado
RICARDO BONALUME NETO
DA REPORTAGEM LOCAL
O título era assustador:
"George Orwell delatou 38
intelectuais", segundo texto do
jornal espanhol "El País", republicado na Ilustrada no dia 26 de junho. Ele fez uma lista com gente
que considerava comunistas ou
assemelhados e que não deveriam
ser convidados pelo governo britânico a fazer propaganda anti-soviética, e passou a uma amiga.
"Delatar", diz o dicionário "Aurélio", significa "denunciar, revelar (crime ou delito); acusar". Se o
dicionário está correto, o escritor
inglês George Orwell, pseudônimo usado por Eric Arthur Blair
(1903-1950), não delatou ninguém. Ele teria delatado se a lista
tivesse sido feita com o propósito
de prejudicar esses 38 intelectuais
-caso pudessem ser presos, por
exemplo. A lista simplesmente
servia de informação óbvia: se você quer alguém para escrever contra o comunismo, não convide esse cara, pois ele é comunista.
"Essas pessoas, cujas simpatias
comunistas eram bem conhecidas, não perderiam seus empregos nem seriam prejudicadas.
Elas apenas não seriam convidadas pelo governo britânico para
escrever propaganda anti-soviética", escreveu um dos biógrafos de
Orwell, Jeffrey Meyers, em livro
de 2000. A existência da lista não é
novidade. Meyers diz que os nomes eram 35, contudo.
A amiga, Celia Paget (nome de
casada, Celia Kirwan), trabalhava
para um órgão do Ministério das
Relações Exteriores britânico
criado em 1948 cuja função era
"encontrar meios de combater a
propaganda comunista, então engajada em uma campanha global
e nociva para solapar o poder e a
influência ocidentais".
Orwell sugeriu a ela nomes para
escrever e também os que não deveriam fazê-lo. Ele próprio, se referindo à lista, disse que "ela não
era nada sensacional, e eu não suponho que ela vai dizer aos seus
amigos algo que já não saibam".
Não era preciso ser nenhum detetive para saber que não se deveria pedir para um dos listados, o
dramaturgo irlandês Bernard
Shaw, um notório simpatizante
da URSS, para escrever contra o
comunismo. Um artigo escrito
por Robert Conquest, um importante especialista em União Soviética, publicado no "Times Literary
Supplement", resume a história:
"A acusação portanto é simplesmente que ele tornou disponível
para uma agência de seu próprio
governo sua honesta, embora não
infalível, opinião".
Nem é preciso lembrar que no
clima de 1948, de começo da
Guerra Fria, a atitude de Orwell
fazia sentido. Ou você estava do
lado da URSS, ou você apoiava o
Ocidente. Socialista democrático
que era, tendo lutado ao lado dos
republicanos na Guerra Civil Espanhola e sofrido ali perseguição
comunista, Orwell não tinha dúvidas sobre qual lado apoiar.
Nos últimos anos, a vida desse
escritor foi esquadrinhada por
biógrafos. Muito se descobriu sobre sua desajeitada vida romântica. Mas nada se achou que desabonasse sua honestidade intelectual, apesar de volta e meia alguém tirar alguma "acusação" do
baú -por exemplo, que sua utopia negativa, o romance "1984",
foi plagiado de "Nós", do russo
Yevgeny Zamyatin (quando o
próprio Orwell escreveu uma resenha elogiosa desse livro, atitude
no mínimo curiosa de um "plagiador"...).
Acusado de "delatar", quando
de fato estava apenas informando; Orwell, crítico da maneira como intelectuais totalitários deformavam a linguagem, certamente
entenderia o caso.
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