São Paulo, terça-feira, 28 de junho de 2005

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FERNANDO BONASSI

Pura lógica!

É lógico que a frieza dos mercantilistas terminasse por bater de frente com as nossas costas quentes e virgens, oferecidas a descobertas. É lógico que doesse, em algum momento. É lógico que os portugueses quisessem tirar dali, ou daqui, o que pudessem. É lógico que nossas frutas e temperos aguçassem-lhes as ganâncias. É lógico que os índios negaceassem. É lógico que morressem de doenças sexualmente transmissíveis. É lógico que as negras e os negros fossem a próxima opção. É lógico que esses feudalismos prosperassem. É lógico que os capitães Mores relaxassem. É lógico que movimentos acontecessem. É lógico que fossem paralisados ou dizimados. É lógico que as penas de nossa escravidão acabassem incomodando nos travesseiros e depósitos industriais ingleses. É lógico que a elite nacional abrisse as pernas e aceitasse a introdução dos empréstimos sedutores. É lógico que os recursos não fossem gastos com o bem comum. É lógico que o bem comum nem existia. É lógico que se pode perguntar se tal recurso, bem ou mal, existe hoje... É lógico que, quanto aos empréstimos, pelo menos, fossem cobrados em dia. É lógico que, quanto aos tomadores de dinheiro, pelo mais, não pudessem, ou não quisessem, pagar. É lógico que se parcelasse. É lógico que as várias parcelas formassem todos infinitos de juros extorsivos. É lógico que mudanças políticas colocassem novas disputas para velhas batalhas. É lógico que elas ficassem restritas a quem pudesse comprar (quanto aos credores propriamente nomeados nos contratos e que continuaram emprestando e recebendo, não consta que perdessem qualquer porção nessa "zona de interesses"). É lógico que os impérios e os imperadores, os mercados e os mercadores se ajeitassem. É lógico que não demos um jeito nessas heranças morais até agora. É lógico que depois de um tempo imemorial viesse a República, o supermercado e o hipermercado, com gôndolas ameaçadoras. É lógico que as mercadorias à disposição não nos satisfizessem. É lógico que alguns quisessem mudar os fatos . É lógico que fossem desprezados. É lógico que as drogas e os drogas prosperassem nos pântanos da incerteza. É lógico que a certeza de que essas atividades improdutivas não pagam impostos aos cofres dos governos fosse um enorme estímulo ao empresariado especializado. É lógico que os governos estiveram, e estão, de olho. É lógico que não enxerguem muito bem, mas sabem meter o seu como ninguém nas fontes dos salários. É lógico que queremos benfeitorias. É lógico que preferimos em dinheiro estrangeiro mais do que em salários mirrados. É lógico que o dinheiro afeta a infelicidade dos encargos públicos e que a crise democrática das derrotas abala a vontade política de vitória nesses congressos retrasados...
É lógico que a sociedade está noutra. É lógico que está pior sem estabilidade funcional. É lógico que a acumulação primitiva do capital pressuponha um desperdício futuro. É lógico que não há bom augúrio e emprego para todos os que querem se mexer nem aposentadoria para todos os que foram mexidos, ou lesados, na lida do trabalho. É lógico que possam fazer pouco em sua defesa. É lógico que muitos culpem os outros safados. É lógico que todos se desculpem, como é lógico que alguns não aceitem. É lógico que esse "Estado de Mal-Estar" se refletisse nos balanços oficiais dos desequilíbrios regionais. É lógico demais que as balanças de pagamentos e as bolsas de valores estejam caindo de maduras e desperdiçando energia humana aos pés das árvores da vida. É lógico que a ciranda financeira deixa os mais vivos investidores tontos. É lógico que muitos percam onde poucos ganham tudo. É lógico que as filas do desespero aumentem. É lógico que devastam a paciência dos cidadãos esfomeados. É lógico que a polícia vai manter a ordem e a disciplina acima de qualquer bagunça, na ponta do negócio que lhe coloquem nas mãos. É lógico que de ordem e progresso o inferno da maioria já está cheio de ônibus lotados e de grandes obras imortais, ou acadêmicas, que não terminam nem se resolvem. É lógico que o julgamento disso tudo é feito pela História. É lógico que o processo pode esperar um século nas instâncias dos tribunais; logo, é lógico que a nossa História possa ser essa... essa...
É lógico que leis existem. É lógico que os juizes se aferrem às letras delas. É lógico que a lei seja de quem a fez em seu próprio benefício. É lógico que só o beneplácito dos advogados não lhes permite tomar o poder nas entrelinhas dos mandatos supremos e medidas provisórias. É lógico que o conforto dos palácios fechados por vidros blindados excite a imaginação dos incomodados que olham de longe. É lógico que os furtos se multipliquem. É lógico que um banco obtenha lucros cujas porcentagens jamais pague aos correntistas. É lógico que o desemprego torna muitos assaltantes. É lógico que os caixas eletrônicos fechem cedo e a quantidade de dinheiro seja regulada. É lógico que os assaltos se regulem a essas meias medidas. É lógico que tenham desprezo pelas vítimas picotadas. É lógico que elas estão dos dois lados, mas é mais lógico que o lado pobre esteja preso em cadeias sem instrução. É lógico que a burrice, de volta à rua, é irmã da violência repetida. É lógico que a violência precisa ser diminuída. É lógico que é preciso ser duro. É lógico que falta vontade de fazer onde falta desejo de mudar. É lógico que todos queiram a sua vez, a sua parte, a sua hora...
É lógico que umas coisas dessas podem voltar-se contra outras, explodindo-se mutuamente em guerras civis e golpes escusos. É lógico que, se os ricos repartissem suas riquezas desnecessárias, os pobres viveriam numa miséria melhor do que aquela onde estão. É lógico que todos acabem morrendo nas esquinas, trocando tiros e sustentando Rolex falsificados. É lógico que é uma piada ingênua. É lógico que não é para rir.


@ - fbonassi@uol.com.br

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