São Paulo, sábado, 28 de julho de 2001

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ARTIGO

Aspectos do romance latino-americano

CARLOS FUENTES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Começo numa noite de verão do ano 1929. Três jovens autores latino-americanos estão parados, fumando, na Pont des Arts, sobre o rio Sena. A revolução surrealista acaba de se manifestar, mais além dos mandatos eclesiásticos de André Breton, num filme que, em última análise, é espanhol até mesmo em seu título: "Um Cão Andaluz", de Luis Buñuel e Salvador Dalí.
Os três jovens imaginam que, mais uma vez, mais cedo do que tarde, a novela latino-americana vai acompanhar uma moda européia -no caso em questão, o surrealismo. "Para quê?", se perguntam os três jovens escritores. "Não somos donos de um surrealismo nativo na América Latina? Será que conseguiremos, com a ficção, igualar uma história que é mais novelesca do que qualquer ficção?"
Um deles tem um rosto de traços fortemente maias, é alto, moreno e o perfil dos deuses de Mayapán. Outro, também alto, tem a aparência de um branco nascido nas colônias, fala com um "erre francês", penteia os cabelos com gel e tem sorriso franco. O terceiro, mestiço de olhos claros, tem um sotaque caribenho pausado e uma disposição crítica aguda. O primeiro é da Guatemala e se chama Miguel Ángel Asturias. O segundo, cubano, é Alejo Carpentier. E o terceiro, venezuelano, é Arturo Uslar Pietri. Entre os três, em graus diversos, eles darão à luz um novo romance hispano-americano no qual a realidade e a fantasia andarão de mãos dadas.
Carpentier vai inaugurar o "realismo mágico" ou "real maravilhoso" em romances como "El Reino de Este Mundo", "Los Pasos Perdidos", "La Guerra del Tiempo", "Concierto Barroco" e "El Siglo de las Luces". Uslar optará pela mitificação dos fatos históricos dos Descobrimentos e das guerras da América. Asturias, por fim, juntará a herança legendária dos índios maias e, com mãos latino-americanas, fará seu o grande tema inaugurado por Valle Inclán: o ditador como protagonista de uma realidade que supera a ficção ("El Señor Presidente").
Asturias, Carpentier e Uslar não inventam o romance hispano-americano, embora o revelem (e se rebelem) criticamente. Somos aliados do paradoxo espanhol. Cervantes funda o romance moderno, mas, depois de "Dom Quixote", as sedes preferenciais da ficção se instalam na Inglaterra, França, Rússia, Alemanha...
A América ibérica não tem romancistas coloniais. As proibições eclesiásticas e políticas o inibiam, com ou sem razão, de tal maneira que a publicação de "El Periquillo Sarniento", de Fernández de Lizardi, em 1821.
O que alcança a plenitude literária na América hispânica é a poesia. Rubén Darío e os modernistas enriquecem, perturbam e levam ao extremo o castelhano da América. De uma linguagem revigorada saem as novelas do encontro entre a natureza e o homem, algumas delas clássicas: "La Vorágine", de José Eustacio Rivera, e "Doña Bárbara", "Canaíma" e "Cantaclaro", de Rómulo Gallegos. Um acontecimento histórico, a revolução mexicana, radicaliza e libera conteúdos e estilos narrativos, aproximando-os às vezes da reportagem, outras, ao estilo épico, mais antigo.
E Cervantes? E "Dom Quixote"? E a tradição da Mancha? "A desprezada herança de Cervantes", como a chama Milan Kundera, não tem, de fato, filhos de língua espanhola nas Américas. Tem um filho que escreve em português. O maior romancista latino-americano do século 19 é o brasileiro Machado de Assis. Em "Memórias Póstumas de Brás Cubas" e "Dom Casmurro", Machado é o único capaz de compreender a lição profunda de Cervantes e dos dois grandes manchegos europeus, Sterne e Diderot.
No extremo sul do continente, é Jorge Luis Borges quem contempla o quadro de suas heranças, pois a de suas breves ficções de imensas ressonâncias, a cultura européia, chega a preencher os vazios enfrentados do oceano e do pampa. Não separo a literatura argentina das outras literaturas ibero-americanas, mas considero que é a melhor.
Borges não está só. O acompanham pelo menos três grandes escritores, Adolfo Bioy Casares, José Bianco e, sobretudo, Julio Cortázar, cujo "Rayuela" é a bússola de nossa modernidade literária. Épica cômica e circular de nossos frágeis equilíbrios entre as duas margens de uma modernidade insegura do rosto que deve dar ao futuro e ao passado. Elaboração superior da linguagem e da fantasia, a obra de Cortázar remete nossa lembrança a outros argentinos que renovaram nossa linguagem, Robert Arlt e Macedônio Fernández, e a dois uruguaios que refrescaram nossa fantasia, Horácio Quiroga e Felisberto Hernández.
E peço desculpas ao leitor, não tanto pelas omissões involuntárias, mas pelas recordações inadiáveis. No entanto, como não é possível repicar e andar na procissão, optei pelo repique sem responso, mas limitando-me aos romancistas fisicamente desaparecidos, embora suas obras, desnecessário dizer, façam parte do eterno presente da leitura.


Tradução Clara Allain


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