São Paulo, sexta, 28 de agosto de 1998

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RECEITAS DO MELLÃO

O peru anarquista

HAMILTON MELLÃO JUNIOR
Colunista da Folha

Eram quatro amigos, quatro bons camaradas. Cresceram juntos, estudaram, namoraram, casaram e descasaram quase ao mesmo tempo. E agora, sozinhos e cansados da vida -pois só quem viveu sabe o quanto a vida cansa-, dedicam-se a sofrer unidos.
Toda a sexta, entravam no carro de um e rumavam para o sítio de algum, em São Roque. No primeiro fim-de-semana, findos infindos copos de cerveja, houve a constatação da mais vilã das certezas: a fome brutal, inexorável e absoluta.
Diante de um frango mais boêmio, os jejunos das lides domésticas julgaram ter encontrado a solução. Assaram-no com penas e tudo, e o resultado foi tão cruel que quase naufragaram entre lágrimas e corizas, clamando pela comidinha das ex-mulheres.
Depois, foram mais equipados. Grelharam picanhas e linguiças e, após muito tempo, riram com alcançada auto-suficiência.
Num crescendo, os quatro se tornaram felizes e gordos gourmets, embora ainda soubessem estar longe de ser um Luis Cintra.
Com o passar do tempo, sentiram-se seguros para fazer um dos mais refinados pratos: o peru recheado à Rossini. Abro um parênteses e explico: esse peru é recheado com fígado fresco de ganso e trufas brancas recém-colhidas. É a prova irrefutável da existência de Deus. Dizem que Rossini só chorou duas vezes: quando ouviu os estrondosos aplausos na estréia de "O Barbeiro de Sevilha" e quando o bote em que ele estava virou e ele ainda não havia dado nenhuma garfada na dita ave.
Depois de um longo périplo, encontraram um no Mercado de Pinheiros. Ele ostentava a crista de um ex-sultão, embora estivesse confinado numa ridícula gaiola.
Os amigos e o peru rumaram imediatamente para o sítio em frenesi gustativo. Mas, como dizia o grande Rosa, "no começo de tudo sempre tem um erro".
Ansiosos, os ex-tristes começaram a beber buscando inspiração para sua mais ousada empreitada. Em meio à ebriedade, surgiu a cizânia: o que o peru deveria beber? Armanhaque, conhaque ou pinga? Como um rastilho, a discussão reacendeu convicções MR9, Libelu e albaneses puros, criando mais um debate bizantino, enquanto eu, apolítico convicto, e o peru, aparentemente também, observávamos impávidos.
Nunca mais os vi, mas tenho agora um grande amigo e companheiro de copo. Deitado na rede, leio para ele "Da Amizade", de Montaigne, enquanto ele me vigia aprovativo e cambaleante.

E-mail: mellao@uol.com.br



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