São Paulo, segunda, 28 de setembro de 1998

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Primavera e a crise nos levando a lugar nenhum

FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha

Poucos viram a primavera chegar. Crise econômica, ruas tomadas por cartazes e faixas eleitorais contribuíram para que a estação não tenha feito uma entrada triunfante.
Aqui na minha rua, há pólen no ar e no chão. Varremos da calcada, ele se acumula no meio-fio, criando uma longa linha amarelada, fronteira de um período suave e luminoso que nos envolverá até o fim do ano.
Há crises e crises. Vi um documentário comemorando mais um aniversário do Dom Quixote, de Cervantes. Os entrevistados carregavam na importância do sonho e lamentavam os momentos finais da vida do herói de Cervantes, conformado com sua modesta condição.
Viver em sonhos. Como enfrentar a crise de fundo do pensamento ocidental e a crise de frente, a do sistema capitalista?
Por acaso, travei contato com o livro de Simon Critchley, intitulado "Muito Pouco, Quase Nada". É um ensaio filosófico sobre o niilismo, que não pretende ressuscitar Deus. O objetivo do autor é reencontrar um sentido para a finitude humana sem recurso a algo que transcenda a esta finitude.
É um belo trabalho que examina os ensaios de Heidegger sobre Nietzsche e alguns autores fundamentais, como Samuel Beckett. Uma das teses é a revelação do niilismo como uma atitude ainda aprisionada ao quadro religioso que pretende transcender. Superar o conjunto de valores que se pretende criticar nem sempre é fácil.
Adorno, segundo o livro, reconhece em Beckett o maior crítico do Holocausto, principalmente, porque na sua obra não há nenhuma referência manifesta a este episódio histórico.
Autores como Beckett, na sua autonomia estética e recusa de sentido, funcionam como negações da sociedade contemporânea e podem dar uma espécie de verossimilhança formal a uma sociedade livre de dominação.
Impossível sintetizar aqui a análise de Adorno e o livro de Critchley, mas a frase de Beckett ("Não posso prosseguir, vou prosseguir") acaba sendo uma espécie de sumário do caminho desse tipo de arte contemporânea -gritos silenciosos de protesto, um tipo de niilismo que resulta no oposto de uma identificação com o Nada.
Passando para a linha de frente, a crise do capitalismo, veremos que a reflexões de Critchley poderiam ser um excelente pré-roteiro para evitarmos uma volta à metafísica ou um mergulho no nada. A morte do socialismo real, no meu entender, tem alguma semelhança com a morte de Deus. Ela suscitou em alguns uma espécie de recaída, uma recusa em rever posições básicas, sob o argumento de que o verdadeiro socialismo ainda não se realizou.
Em outros, abriu caminho para uma violenta reavaliação que desembocou no cinismo. Os quadros comunistas no Leste Europeu, em muitos casos, se transformaram em prósperos empresários.
Daí estarmos sempre trabalhando com teses do futuro luminoso do capitalismo ou da derrocada final do sistema -teses que às vezes se articulam com dogmas, como o do Estado resolvendo todos os problemas econômicos ou do mercado, regulando magicamente as complexas relações humanas.
É muito difícil suportar a realidade sem a construção de algum abrigo metafísico, é muito difícil simplesmente suportar. Já passei por várias crises finais do capitalismo e ele sobreviveu; por mais que me convençam de que o mercado tudo regula, a cada instante surpreendem-me as irracionalidades, a subutilização de recursos, a tendência à destruição planetária.
Daí a semelhança das duas crises: elas nos levam aos esquemas totalizantes, às grandes certezas e, sem querer, estamos apenas construindo abrigos para nos defendermos da realidade insuportável.
A primavera chegou num momento em que as crises se articulam, mas nem por isso deveria ser subestimada. Não tem o poder de salvar ninguém do desespero existencial, muito menos o de criar empregos num mundo em parafuso econômico.
Romantismo? Essa não-saída, felizmente, está contemplada no estudo da crise contemporânea. A primavera é apenas um encontro com a vida em movimento -talvez uma dessas pequenas coisas, quase nada, que possam nos ajudar na busca de um sentido nos escombros do paraíso celestial e do paraíso terrestre, de Deus e do socialismo.
Buscar um sentido para a finitude, para o fato de que morremos, não é fácil. A rigor, a primavera não quer dizer nada e está meio escondida na absurda barreira dos cartazes e galhardetes eleitorais, na queda vertiginosa das bolsas. Ela apenas nos ajuda a suportar, daí minha a sugestão para que se leve em conta a sua presença.



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