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Primavera e a crise nos levando a lugar nenhum
FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha
Poucos viram a primavera
chegar. Crise econômica, ruas
tomadas por cartazes e faixas
eleitorais contribuíram para
que a estação não tenha feito
uma entrada triunfante.
Aqui na minha rua, há pólen
no ar e no chão. Varremos da
calcada, ele se acumula no
meio-fio, criando uma longa linha amarelada, fronteira de
um período suave e luminoso
que nos envolverá até o fim do
ano.
Há crises e crises. Vi um documentário comemorando mais
um aniversário do Dom Quixote, de Cervantes. Os entrevistados carregavam na importância do sonho e lamentavam os
momentos finais da vida do herói de Cervantes, conformado
com sua modesta condição.
Viver em sonhos. Como enfrentar a crise de fundo do pensamento ocidental e a crise de
frente, a do sistema capitalista?
Por acaso, travei contato com
o livro de Simon Critchley, intitulado "Muito Pouco, Quase
Nada". É um ensaio filosófico
sobre o niilismo, que não pretende ressuscitar Deus. O objetivo do autor é reencontrar um
sentido para a finitude humana sem recurso a algo que
transcenda a esta finitude.
É um belo trabalho que examina os ensaios de Heidegger
sobre Nietzsche e alguns autores fundamentais, como Samuel Beckett. Uma das teses é a
revelação do niilismo como
uma atitude ainda aprisionada
ao quadro religioso que pretende transcender. Superar o conjunto de valores que se pretende
criticar nem sempre é fácil.
Adorno, segundo o livro, reconhece em Beckett o maior crítico do Holocausto, principalmente, porque na sua obra não
há nenhuma referência manifesta a este episódio histórico.
Autores como Beckett, na sua
autonomia estética e recusa de
sentido, funcionam como negações da sociedade contemporânea e podem dar uma espécie
de verossimilhança formal a
uma sociedade livre de dominação.
Impossível sintetizar aqui a
análise de Adorno e o livro de
Critchley, mas a frase de Beckett ("Não posso prosseguir,
vou prosseguir") acaba sendo
uma espécie de sumário do caminho desse tipo de arte contemporânea -gritos silenciosos de protesto, um tipo de niilismo que resulta no oposto de
uma identificação com o Nada.
Passando para a linha de
frente, a crise do capitalismo,
veremos que a reflexões de
Critchley poderiam ser um excelente pré-roteiro para evitarmos uma volta à metafísica ou
um mergulho no nada. A morte
do socialismo real, no meu entender, tem alguma semelhança com a morte de Deus. Ela
suscitou em alguns uma espécie
de recaída, uma recusa em rever posições básicas, sob o argumento de que o verdadeiro socialismo ainda não se realizou.
Em outros, abriu caminho para uma violenta reavaliação
que desembocou no cinismo. Os
quadros comunistas no Leste
Europeu, em muitos casos, se
transformaram em prósperos
empresários.
Daí estarmos sempre trabalhando com teses do futuro luminoso do capitalismo ou da
derrocada final do sistema
-teses que às vezes se articulam com dogmas, como o do Estado resolvendo todos os problemas econômicos ou do mercado, regulando magicamente
as complexas relações humanas.
É muito difícil suportar a realidade sem a construção de algum abrigo metafísico, é muito
difícil simplesmente suportar.
Já passei por várias crises finais
do capitalismo e ele sobreviveu;
por mais que me convençam de
que o mercado tudo regula, a
cada instante surpreendem-me
as irracionalidades, a subutilização de recursos, a tendência
à destruição planetária.
Daí a semelhança das duas
crises: elas nos levam aos esquemas totalizantes, às grandes
certezas e, sem querer, estamos
apenas construindo abrigos para nos defendermos da realidade insuportável.
A primavera chegou num momento em que as crises se articulam, mas nem por isso deveria ser subestimada. Não tem o
poder de salvar ninguém do desespero existencial, muito menos o de criar empregos num
mundo em parafuso econômico.
Romantismo? Essa não-saída,
felizmente, está contemplada
no estudo da crise contemporânea. A primavera é apenas um
encontro com a vida em movimento -talvez uma dessas pequenas coisas, quase nada, que
possam nos ajudar na busca de
um sentido nos escombros do
paraíso celestial e do paraíso
terrestre, de Deus e do socialismo.
Buscar um sentido para a finitude, para o fato de que morremos, não é fácil. A rigor, a
primavera não quer dizer nada
e está meio escondida na absurda barreira dos cartazes e galhardetes eleitorais, na queda
vertiginosa das bolsas. Ela apenas nos ajuda a suportar, daí
minha a sugestão para que se
leve em conta a sua presença.
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