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29ª MOSTRA DE CINEMA
"Pai do cinema africano", com 40 filmes no currículo, crê que sua função é refletir a realidade de seu país e falar a seu povo
Sembene promove sua "militância" social
ALEXANDER CARNWATH
DO "INDEPENDENT"
O "pai do cinema africano" foi
premiado em Cannes no ano passado. Mas para o senegalês Ousmane Sembene, 82, o que importa
é falar à sociedade em evolução.
Em 40 anos de filmes sobre a sociedade africana, jamais sofreu de
escassez de alvos para a sátira, que
é sua marca registrada. Mas sempre reservou especial ridículo à
elite endinheirada. Em "Xala"
(75), ele os mostra lavando seus
Mercedes com água mineral.
Com isso em mente, não é difícil
perceber a atração do cenário que
ele escolheu para viver. Seu escritório fica no primeiro andar de
um caótico edifício no centro de
Dacar. Vendedores ambulantes
oferecem frutas secas e biscoitos
aos transeuntes, o tráfego não anda, buzinas ecoam. O barulho e a
fumaça chegam a nós pela janela,
aberta para aliviar o calor. O observador sente que Sembene, um
homem que vive o cinema, dificilmente poderia ter criado um cenário mais deliberado para retratar um homem imerso na África.
Mas o estilo de Sembene jamais
foi introspectivo. Sua característica dominante é uma independência tão teimosa quanto beligerante. Ex-escritor, criado no sul do
Senegal, escolheu o cinema como
maneira de falar a seus compatriotas: "Crio para falar a meu povo, a meu país. A prioridade é que
meu povo me compreenda".
Ele talvez não se incomode com
a recepção que seus filmes têm no
mundo ocidental, mas está convencido de que seu trabalho tem
um papel no desenvolvimento
africano. "A África precisa ver seu
próprio reflexo. Uma sociedade
progride fazendo perguntas a si
mesma. Por isso quero ser um artista que questiona seu povo."
Levando em conta que esse
questionamento o fez retratar os
líderes africanos de forma pouco
lisonjeira, não surpreende que ele
tenha encontrado problemas para exibir seu trabalho na África.
"Xala" sofreu 12 cortes antes de
ser exibido em Dacar; "Ceddo" ficou proibido por muitos anos.
A escassez de salas na África
Ocidental também causa dificuldades de acesso a seu trabalho,
por isso Sembene se encarrega
pessoalmente de levar o cinema
ao público. Organiza turnês com
caminhões transportando seus
filmes a aldeias distantes e discussões após cada exibição. "Para
mim, o cinema não gira em torno
dos negócios. O que realmente
importa é a militância."
E também o senso de comunidade. O entusiasmo de Sembene
por exibições ao ar livre e discussões públicas, em lugar do anonimato da experiência cinematográfica convencional, reflete a importância de conseguir que a platéia se envolva com seu trabalho.
Isso levou críticos a relacionar seu
cinema à tradição oral africana,
sob a qual aldeias se reúnem para
ver narrativas das histórias locais
em espetáculos públicos.
Mas, quando essa interpretação
é sugerida a ele, Sembene recebe a
idéia com exasperação. "Essa forma de narrar teve sua era histórica", contesta. "É como os menestréis, na Inglaterra. Os africanos
não devem se sentir limitados por
isso, dizendo que somos assim. A
África do passado não retornará."
Se os filmes de Sembene são
"africanos", portanto, é porque
refletem a evolução da identidade
do continente, e não porque se
demoram na exibição de uma pitoresca nostalgia cultural. "Ou a
África adota sua era, seu tempo,
ou não. Não existe alternativa",
diz, protestando contra as teorias
que seu trabalho suscita entre os
críticos ocidentais.
Tendo exposto sua posição, ele
se torna mais expansivo ao discorrer sobre as contradições que a
sociedade africana enfrenta e que
se refletem em seus filmes. Fala do
conflito de valores entre os políticos senegaleses educados no Ocidente e os líderes espirituais nacionais, cuja educação é árabe, e
do esforço de cada uma dessas
facções para conduzir o país a um
determinado futuro. Fala do impacto das estações privadas de rádio que hoje existem em toda a
África Ocidental, em comunicação com as imensas audiências
usando idiomas africanos e causando ansiedade à elite francófona. E fala também da influência
dos filmes e novelas ocidentais,
uma forma de colonialismo cultural que distorce as prioridades
africanas. "Todos esses conflitos
conduzem a África a um momento de grande responsabilidade. É
uma encruzilhada, um momento
de escolha entre determinados
valores. Mas, como artista, meu
problema é ver essas contradições
e expô-las à minha sociedade."
Tradução Paulo Migliacci
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