São Paulo, sexta-feira, 28 de outubro de 2005

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CRÍTICA

Com "cinema do verbo", senegalês promove curto-circuito em tradições

TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

Desde que, há 40 anos, o senegalês Ousmane Sembene descobriu que era louco o suficiente para se propor a fazer cinema, a eterna utopia de um "cinema africano" começou a se tornar um pouco menos delirante.
Se a "experiência Sembene" se confunde com a história da cinematografia africana foi porque, mais do que a proeza de fazer cinema (filmes esparsos, feitos contra as piores condições), ele soube expressar, para além dos clichês coloniais e neocoloniais de africanidade, a originalidade primeira dessa cinematografia, a fala.
"Moolaadé" é seu mais recente milagre. O título é uma dessas palavras que, na obra de Sembene, ganham um inesperado teor político. "Moolaadé" é a palavra que a protagonista, Mãe Callé, evoca para proteger quatro crianças da "purificação", a cerimônia religiosa (traumática, no mínimo) em que os senegaleses islamizados mutilam o clitóris das filhas.
"Moolaadé", como descobrimos aos poucos, é o nome de uma entidade religiosa anterior à islamização do Senegal. Ao invocá-la, Mãe Callé atiça contra si o poder das dogmáticas autoridades islâmicas, instalando um conflito cultural e religioso no seio de sua comunidade, ambiente ideal para Sembene desenvolver o seu já consagrado "cinema do verbo".
Contra a lei escrita do Alcorão, Sembene evoca sempre a liberdade da tradição oral africana. Callé é descendente, nesse sentido, da princesa de "Ceddo" (obra-prima de 1977, censurada pelo regime islâmico), heroína da resistência cultural ao islã. A exemplo dela, Callé toma para si a missão de restituir à palavra falada o seu valor de lei, uma política que visa fazer frente aos dogmas impostos pelas autoridades masculinas do islã.
Sembene se ocupa a partir daí em extrair as conseqüências desse pequeno gesto -a começar da conscientização das mulheres, cúmplices indolentes da autoridade e da linguagem dos homens. Mais anticlerical do que antiislâmico, promove um curto-circuito entre tradições. É assim que rádios e TVs se tornam armas na luta entre os defensores da rígida tradição escrita e a ancestralidade da maleável tradição oral.


Moolaadé
    
Direção: Ousmane Sembene
Quando: hoje, às 20h, no Cine MorumbiShopping; domingo, às 17h50, no Espaço Unibanco; e dia 1º, às 17h35, no Frei Caneca Arteplex


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