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CRÍTICA
Com "cinema do verbo", senegalês promove curto-circuito em tradições
TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA
Desde que, há 40 anos, o senegalês Ousmane Sembene
descobriu que era louco o suficiente para se propor a fazer cinema, a eterna utopia de um "cinema africano" começou a se tornar
um pouco menos delirante.
Se a "experiência Sembene" se
confunde com a história da cinematografia africana foi porque,
mais do que a proeza de fazer cinema (filmes esparsos, feitos contra as piores condições), ele soube
expressar, para além dos clichês
coloniais e neocoloniais de africanidade, a originalidade primeira
dessa cinematografia, a fala.
"Moolaadé" é seu mais recente
milagre. O título é uma dessas palavras que, na obra de Sembene,
ganham um inesperado teor político. "Moolaadé" é a palavra que a
protagonista, Mãe Callé, evoca
para proteger quatro crianças da
"purificação", a cerimônia religiosa (traumática, no mínimo)
em que os senegaleses islamizados mutilam o clitóris das filhas.
"Moolaadé", como descobrimos aos poucos, é o nome de uma
entidade religiosa anterior à islamização do Senegal. Ao invocá-la,
Mãe Callé atiça contra si o poder
das dogmáticas autoridades islâmicas, instalando um conflito cultural e religioso no seio de sua comunidade, ambiente ideal para
Sembene desenvolver o seu já
consagrado "cinema do verbo".
Contra a lei escrita do Alcorão,
Sembene evoca sempre a liberdade da tradição oral africana. Callé
é descendente, nesse sentido, da
princesa de "Ceddo" (obra-prima
de 1977, censurada pelo regime islâmico), heroína da resistência
cultural ao islã. A exemplo dela,
Callé toma para si a missão de restituir à palavra falada o seu valor
de lei, uma política que visa fazer
frente aos dogmas impostos pelas
autoridades masculinas do islã.
Sembene se ocupa a partir daí
em extrair as conseqüências desse
pequeno gesto -a começar da
conscientização das mulheres,
cúmplices indolentes da autoridade e da linguagem dos homens.
Mais anticlerical do que antiislâmico, promove um curto-circuito
entre tradições. É assim que rádios e TVs se tornam armas na luta entre os defensores da rígida
tradição escrita e a ancestralidade
da maleável tradição oral.
Moolaadé
Direção: Ousmane Sembene
Quando: hoje, às 20h, no Cine
MorumbiShopping; domingo, às 17h50,
no Espaço Unibanco; e dia 1º, às 17h35,
no Frei Caneca Arteplex
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