São Paulo, quarta, 28 de outubro de 1998

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Memória é o resultado da luta política

MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

Covas foi reeleito, Maluf perdeu. Muito bem. Escrevo este artigo um dia depois da eleição, e a notícia já parece pertencer a um passado remoto. As atenções se voltam, muito brasileiramente, para o pacote econômico -que, muito brasileiramente também, já estava previsto para vir logo depois da "festa cívica".
Peço desculpas pelo clichê. Na verdade, em vez de "festa cívica" seria mais apropriado usar um outro, muito comum nesta época também: o que caracteriza as eleições como um "rito democrático". Encerrada a liturgia, que caiu num domingo aliás, é como se a segunda-feira já nos pusesse diante da materialidade prática dos aumentos de impostos e cortes orçamentários.
Não quero dizer com isto que as eleições não tiveram nenhum significado. Ao contrário. A vitória de Covas sobre Maluf, para qualquer pessoa que tenha acompanhado a história do país nestes últimos 20 anos, é a vitória de um político que sempre esteve na oposição ao regime militar, enquanto que Maluf ainda representa um modelo de desenvolvimento baseado nas grandes obras públicas, concentrador de renda, propício a negociatas e repressor dos movimentos sociais.
Tenho quase certeza, aliás, de que o voto em Maluf ou em Covas é predominantemente ideológico. Quem vota em Maluf certamente o faz por horror à esquerda, porque não acredita muito em direitos humanos, porque quer ver a Rota na rua, porque se entusiasma mais com o tema da autoridade do que com o da democracia, porque gosta mais de obras do que de gastos sociais. E quem vota em Covas o faz por rejeição a Maluf.
Tudo isso é óbvio. O que me deixa espantado é que, ao longo da campanha -e em especial no último debate entre os candidatos-, esses temas praticamente não tenham sido discutidos. É como se o significado político de cada candidato, os valores em jogo, o conteúdo ideológico da eleição, tudo tivesse sido simplesmente reprimido, recalcado, censurado.
No debate de sexta-feira, o fenômeno chegou às raias do ridículo. Eram números e mais números que Covas e Maluf ostentavam um contra o outro sem que evidentemente o eleitor pudesse comprovar a veracidade do que cada um dizia. Mesmo porque um chamava o outro de mentiroso e pronto.
Só no último bloco é que Covas se lembrou de vincular Maluf ao regime militar. Disse que Maluf não queria se lembrar do passado porque este o envergonhava. Mas o problema se manifestou ao longo de toda a campanha.
Natural que acusações de corrupção, menções a escândalos recentes ou antigos ocupassem grande parte do discurso antimalufista. Mas nada se disse, ou pouquíssimo, sobre democracia, direitos humanos, Rota, repressão, tortura policial. A canalização do córrego Jacu-Pêssego e a rodovia Carvalho Pinto, os gastos com Leve- Leite e Leve-Frango, ou seja lá que nome tenha, ganharam mais destaque do que qualquer diferença ideológica, do que qualquer referência ao passado.
Neste sentido, quem deu o tom da campanha foi, sem dúvida, Maluf. "Programas de governo". Ora, de que adianta discutir "programas de governo" de um ponto de vista puramente tecnocrático? Fulano construirá 300 escolas, o outro 301. Alguma proposta de reforma, alguma proposta de mudança real? Nada, exceto promessas de mais competência administrativa contra reafirmações de honestidade pessoal.
Desse modo, é como se os próprios candidatos tivessem esvaziado o debate e como se o contraste ideológico entre os dois -real, antigo, notório e profundo- precisasse ser escondido a todo custo.
É o velho tema do "país sem memória". Acontece que essa falta de memória não ocorre por acaso. A história política, a referência a um passado afinal recente e a menção a valores ideológicos mais gerais são algo que também se constrói politicamente, que pode ou não ser estimulado por parte das lideranças políticas, dos meios de comunicação etc. Mas por que isto não acontece? Por que a história não é invocada?
Vejo três razões possíveis. A primeira é de ordem demográfica, o fato de uma grande parcela do eleitorado ser jovem -e isto se alia à má qualidade do ensino em geral, fazendo com que as campanhas políticas tendam a respeitar enormemente a ignorância e a despolitização do público. Mas não é só isto.
Como as carências sociais e econômicas do país são gigantescas, também o debate político se faz no ritmo dos pacotes de curto prazo, privilegiando o imediato de uma canalização, de um asfaltamento, de mais 20 carros de polícia. O governador é um provedor, razoavelmente honesto ou muitíssimo desonesto, competente como um trator ou lerdo como um carro de boi, mas raramente seu cargo será visto como um cargo político. Foge-se da ideologia e do passado, porque cada enchente é um dilúvio, cada nova camada de asfalto tem o valor de uma era geológica, cada eletrificação de favela lança o dia anterior na idade das trevas.
A terceira razão desse "desmemoriamento" é de ordem política. Como no Brasil os regimes institucionais mudam sem que haja uma real ruptura, como as transições se fazem pela acomodação e pelo adesismo, como as alianças mais improváveis se estabelecem na cúpula, o recurso ao passado tende a ser sempre constrangedor.
A ideologia e o compromisso político se desfazem não simplesmente porque "nosso povo não tem memória", mas porque as próprias elites se encarregam de esquecer rapidamente o que disseram ou escreveram. Nem sempre isto é apenas uma questão de mau- caratismo. Tudo depende da correlação de forças, do jogo do poder.
Veja-se o caso de Pinochet. Como em toda América Latina, a transição democrática no Chile se fez por negociação, por meio de um compromisso. Nada mais desejável do que uma punição para Pinochet. Teria importância histórica universal. Mas só faz justiça quem tem poder. Não havia condições internas para que os próprios chilenos punissem seu ditador. Que isso venha a ser feito por outro país não é humilhação -é questão de força política concreta.
A possibilidade de que ninguém se esqueça dos crimes de Pinochet -e de que estes não fiquem impunes- depende, em suma, não da quantidade de fosfato média no cérebro de cada população, mas do poder relativo de que se dispõe. "Memória" é algo que resulta da luta política.
Mas é precisamente isto que, nas eleições, parece que tentamos esquecer.



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