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Memória é o resultado da luta política
MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas
Covas foi reeleito, Maluf perdeu. Muito bem. Escrevo este
artigo um dia depois da eleição, e a notícia já parece pertencer a um passado remoto.
As atenções se voltam, muito
brasileiramente, para o pacote
econômico -que, muito brasileiramente também, já estava
previsto para vir logo depois da
"festa cívica".
Peço desculpas pelo clichê.
Na verdade, em vez de "festa
cívica" seria mais apropriado
usar um outro, muito comum
nesta época também: o que caracteriza as eleições como um
"rito democrático". Encerrada
a liturgia, que caiu num domingo aliás, é como se a segunda-feira já nos pusesse diante
da materialidade prática dos
aumentos de impostos e cortes
orçamentários.
Não quero dizer com isto que
as eleições não tiveram nenhum significado. Ao contrário. A vitória de Covas sobre
Maluf, para qualquer pessoa
que tenha acompanhado a história do país nestes últimos 20
anos, é a vitória de um político
que sempre esteve na oposição
ao regime militar, enquanto
que Maluf ainda representa
um modelo de desenvolvimento baseado nas grandes obras
públicas, concentrador de renda, propício a negociatas e repressor dos movimentos sociais.
Tenho quase certeza, aliás, de
que o voto em Maluf ou em Covas é predominantemente
ideológico. Quem vota em Maluf certamente o faz por horror
à esquerda, porque não acredita muito em direitos humanos,
porque quer ver a Rota na rua,
porque se entusiasma mais
com o tema da autoridade do
que com o da democracia, porque gosta mais de obras do que
de gastos sociais. E quem vota
em Covas o faz por rejeição a
Maluf.
Tudo isso é óbvio. O que me
deixa espantado é que, ao longo da campanha -e em especial no último debate entre os
candidatos-, esses temas praticamente não tenham sido
discutidos. É como se o significado político de cada candidato, os valores em jogo, o conteúdo ideológico da eleição, tudo tivesse sido simplesmente
reprimido, recalcado, censurado.
No debate de sexta-feira, o fenômeno chegou às raias do ridículo. Eram números e mais
números que Covas e Maluf ostentavam um contra o outro
sem que evidentemente o eleitor pudesse comprovar a veracidade do que cada um dizia.
Mesmo porque um chamava o
outro de mentiroso e pronto.
Só no último bloco é que Covas se lembrou de vincular Maluf ao regime militar. Disse que
Maluf não queria se lembrar
do passado porque este o envergonhava. Mas o problema
se manifestou ao longo de toda
a campanha.
Natural que acusações de
corrupção, menções a escândalos recentes ou antigos ocupassem grande parte do discurso
antimalufista. Mas nada se
disse, ou pouquíssimo, sobre
democracia, direitos humanos,
Rota, repressão, tortura policial. A canalização do córrego
Jacu-Pêssego e a rodovia Carvalho Pinto, os gastos com Leve- Leite e Leve-Frango, ou seja
lá que nome tenha, ganharam
mais destaque do que qualquer
diferença ideológica, do que
qualquer referência ao passado.
Neste sentido, quem deu o
tom da campanha foi, sem dúvida, Maluf. "Programas de
governo". Ora, de que adianta
discutir "programas de governo" de um ponto de vista puramente tecnocrático? Fulano
construirá 300 escolas, o outro
301. Alguma proposta de reforma, alguma proposta de mudança real? Nada, exceto promessas de mais competência
administrativa contra reafirmações de honestidade pessoal.
Desse modo, é como se os próprios candidatos tivessem esvaziado o debate e como se o
contraste ideológico entre os
dois -real, antigo, notório e
profundo- precisasse ser escondido a todo custo.
É o velho tema do "país sem
memória". Acontece que essa
falta de memória não ocorre
por acaso. A história política, a
referência a um passado afinal
recente e a menção a valores
ideológicos mais gerais são algo que também se constrói politicamente, que pode ou não
ser estimulado por parte das lideranças políticas, dos meios
de comunicação etc. Mas por
que isto não acontece? Por que
a história não é invocada?
Vejo três razões possíveis. A
primeira é de ordem demográfica, o fato de uma grande parcela do eleitorado ser jovem
-e isto se alia à má qualidade
do ensino em geral, fazendo
com que as campanhas políticas tendam a respeitar enormemente a ignorância e a despolitização do público. Mas
não é só isto.
Como as carências sociais e
econômicas do país são gigantescas, também o debate político se faz no ritmo dos pacotes
de curto prazo, privilegiando o
imediato de uma canalização,
de um asfaltamento, de mais
20 carros de polícia. O governador é um provedor, razoavelmente honesto ou muitíssimo desonesto, competente como um trator ou lerdo como
um carro de boi, mas raramente seu cargo será visto como um
cargo político. Foge-se da ideologia e do passado, porque cada enchente é um dilúvio, cada
nova camada de asfalto tem o
valor de uma era geológica, cada eletrificação de favela lança
o dia anterior na idade das trevas.
A terceira razão desse "desmemoriamento" é de ordem
política. Como no Brasil os regimes institucionais mudam
sem que haja uma real ruptura, como as transições se fazem
pela acomodação e pelo adesismo, como as alianças mais improváveis se estabelecem na
cúpula, o recurso ao passado
tende a ser sempre constrangedor.
A ideologia e o compromisso
político se desfazem não simplesmente porque "nosso povo
não tem memória", mas porque as próprias elites se encarregam de esquecer rapidamente o que disseram ou escreveram. Nem sempre isto é apenas
uma questão de mau- caratismo. Tudo depende da correlação de forças, do jogo do poder.
Veja-se o caso de Pinochet.
Como em toda América Latina, a transição democrática no
Chile se fez por negociação, por
meio de um compromisso. Nada mais desejável do que uma
punição para Pinochet. Teria
importância histórica universal. Mas só faz justiça quem
tem poder. Não havia condições internas para que os próprios chilenos punissem seu ditador. Que isso venha a ser feito por outro país não é humilhação -é questão de força
política concreta.
A possibilidade de que ninguém se esqueça dos crimes de
Pinochet -e de que estes não
fiquem impunes- depende,
em suma, não da quantidade
de fosfato média no cérebro de
cada população, mas do poder
relativo de que se dispõe. "Memória" é algo que resulta da
luta política.
Mas é precisamente isto que,
nas eleições, parece que tentamos esquecer.
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