São Paulo, sábado, 28 de novembro de 1998

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Nefastos nas asas da infâmia

ALBERTO DINES
Colunista da Folha

"A grande delinquência pode acabar com a democracia." Quem o disse foi o juiz espanhol Carlos Jiménez Villarejo, que preside a recém-criada Fiscalía Anticorrupción, numa entrevista ao jornal "El País" (em 30 de agosto de 98).
Na Rússia, a grande delinquência tem nome, cara, endereço -a máfia. Enroscada no poder econômico e no poder político, chantageia, mata, esfola. O assassinato da deputada liberal Galina Staroivoitova é uma amostra do seu poder. Se vivo fosse, o poderoso chefão Al Capone morreria novamente. De despeito: a pátria do "socialismo real" conseguiu produzir em prazos fulminantes a mais perfeita clonagem do gangsterismo de Chicago. A democracia russa só será viável quando esse terrorismo for dominado e suas ramificações extirpadas do Estado, da sociedade e da mentalidade russa.
A grande delinquência brasileira ainda não mata. Mas chantageia e esfola. Egressa da ditadura, habituada ao vale- tudo, transita com igual desenvoltura pelos porões do mundo empresarial e político. Faz ponto em Miami, o grande antro da delinquência continental. Diferente da máfia russa, goza de imunidade parlamentar. Transgênica, camufla-se com mantos de certas confissões religiosas geradas na ignorância e na miséria. Acostumada à impunidade, diplomada nas táticas de sobrevivência na selva, sabe se enfiar nas franjas mais obscuras do espectro ideológico. Até se apresenta como "progressista".
O grande trunfo da grande delinquência brasileira -sua vantagem competitiva- é a capacidade de se infiltrar na imprensa, manipulando ingenuidades, inexperiências e, sobretudo, a incontrolável vocação para "fazer barulho". Acende estopins e esconde-se na moita. Exemplo disso é a divulgação irrestrita do papelucho de Cayman, desde o início comprovadamente falso. Não obstante, foi publicado com destaque ao longo de duas semanas, seu teor chicaneiro foi validado pela reiteração e por canhestras reservas.
A grande imprensa publicaria informações de uma carta anônima ou documento apócrifo envolvendo a honradez e a dignidade de um dos membros das ilustres famílias que controlam a mídia brasileira? Algum parlamentar a leria em plenário? Acusações fraudulentas e caluniosas sobre comissões, sobrepreço ou isenções de importação de papel, tráfico de influência e conflitos de interesse envolvendo empresas, empresários, executivos da mídia poderiam ser plantadas nas colunas político-mundanas de nossos jornais como foram aquelas que envolveram quatro homens públicos de primeira grandeza?
A grande delinquência pode acabar com a democracia. Quando consegue, como aqui, manter-se acima de qualquer suspeita e, ao mesmo tempo, colocar sob suspeita todos aqueles que deseja destruir. Nossa cosa nostra fere frontalmente o Estado de Direito, avacalha a majestade da Justiça e compromete a credibilidade das demais instituições, inclusive da imprensa.
Outro exemplo dessa tríplice perversão é o grampo do BNDES. As fitas resultaram de uma ação criminosa, o seu teor foi juntado a um inquérito policial que servirá de base a um processo judicial cujo sigilo é inviolável.
A despeito dessas injunções legais, as fitas foram divulgadas. Digamos que a defesa do interesse público sobreponha-se à defesa da privacidade individual. Mas publicar um documento dessa importância de forma resumida, descontextualizada e precária é ignorar as mais comezinhas responsabilidades jornalísticas.
Quando a TV americana divulgou na íntegra as quatro horas do depoimento do presidente Clinton, não o fez por causa do ibope local -grandes porções eram chatíssimas-, mas para preservar a integridade do documento. Revistas e jornais que o resumiram usaram de habilidade e competência para resguardar o seu sentido e impedir mal-entendidos. Além disso, o próprio Legislativo americano encarregou-se de disseminar a versão integral.
Se as revistas de informação que divulgaram as fitas do BNDES não dispõem de recursos para uma publicação extensiva e criteriosa de uma peça dessa importância, que mudem de ramo -o nicho da imprensa marrom está vazio. Em cima destas transcrições sumarizadas, obtidas a partir de fitas editadas pelos próprios grampeadores, o Senado fez aquela sessão "histórica" onde alternaram-se os torquemadas de fancaria com as patacoadas gauchescas (nada a ver com a grande oratória gaúcha).
Depois do dramático fim-de- semana à espera de que alguma publicação conseguisse contextualizar os excertos anteriores, o presidente confessou: "Precisamos meditar sobre o que significa dar asas à infâmia" ("Jornal do Brasil", 24/11/98). No dia seguinte, FHC alongou-se em observações sobre a mídia em geral e a brasileira em particular (publicadas em 25/11/98 resumidamente -outra infração).
Os reparos presidenciais não são novos, desdobram e explicitam outros, mais extensos, que constam de dois livros recentes: "O Presidente Segundo o Sociólogo", de Roberto Pompeu de Toledo (Cia. das Letras, maio de 1998, págs. 165 a 186), e "O Mundo em Português, um Diálogo" (conversas com Mário Soares, editora Paz e Terra, agosto de 1998, págs. 87 a 98).
A novidade conceitual e drástica da última fala é que o chefe da nação finalmente abandonou a tese dos "boys scouts" de que a mídia deve adotar a auto- regulamentação nos moldes dos publicitários. Quando tornou pública essa suprema ingenuidade, FHC levou o merecido piparote (Folha, caderno Ilustrada, 1/11/98). Agora, corrigiu-se e adotou a posição preconizada pelos jornalistas por meio de sua federação: impõe-se uma nova Lei de Imprensa, democrática e responsável. Auto-regulamentação da imprensa equivale a convocar os nefastos para dirigir a Receita Federal (a metáfora original menciona Al Capone; de autoria de Conrad Black, empresário inglês que reclamou da Press Complaints Comission).
Para que a imprensa não seja cúmplice involuntária dos grandes delinquentes que se cevam na democracia, é imperioso dinamizar a tramitação da nova redação da Lei de Imprensa de autoria do deputado Vilmar Rocha (PMDB-GO). E instalar na abertura da nova legislatura o Conselho de Comunicação Social, órgão auxiliar do Congresso Nacional previsto na Constituição de 88 e já regulamentado.
Os Pinochets sem farda não feriram apenas os funcionários demissionários, o PSDB e o governo. Feriram o Estado. Tentaram um golpe para lembrar os 30 anos do AI-5. Nas asas da infâmia machucaram a democracia.



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