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Nefastos nas asas da infâmia
ALBERTO DINES
Colunista da Folha
"A grande delinquência pode
acabar com a democracia."
Quem o disse foi o juiz espanhol
Carlos Jiménez Villarejo, que
preside a recém-criada Fiscalía
Anticorrupción, numa entrevista ao jornal "El País" (em 30 de
agosto de 98).
Na Rússia, a grande delinquência tem nome, cara, endereço -a máfia. Enroscada no
poder econômico e no poder político, chantageia, mata, esfola.
O assassinato da deputada liberal Galina Staroivoitova é uma
amostra do seu poder. Se vivo
fosse, o poderoso chefão Al Capone morreria novamente. De
despeito: a pátria do "socialismo real" conseguiu produzir em
prazos fulminantes a mais perfeita clonagem do gangsterismo
de Chicago. A democracia russa
só será viável quando esse terrorismo for dominado e suas ramificações extirpadas do Estado, da sociedade e da mentalidade russa.
A grande delinquência brasileira ainda não mata. Mas
chantageia e esfola. Egressa da
ditadura, habituada ao vale-
tudo, transita com igual desenvoltura pelos porões do mundo
empresarial e político. Faz ponto em Miami, o grande antro da
delinquência continental. Diferente da máfia russa, goza de
imunidade parlamentar.
Transgênica, camufla-se com
mantos de certas confissões religiosas geradas na ignorância e
na miséria. Acostumada à impunidade, diplomada nas táticas de sobrevivência na selva,
sabe se enfiar nas franjas mais
obscuras do espectro ideológico.
Até se apresenta como "progressista".
O grande trunfo da grande delinquência brasileira -sua
vantagem competitiva- é a capacidade de se infiltrar na imprensa, manipulando ingenuidades, inexperiências e, sobretudo, a incontrolável vocação
para "fazer barulho". Acende
estopins e esconde-se na moita.
Exemplo disso é a divulgação irrestrita do papelucho de Cayman, desde o início comprovadamente falso. Não obstante,
foi publicado com destaque ao
longo de duas semanas, seu teor
chicaneiro foi validado pela reiteração e por canhestras reservas.
A grande imprensa publicaria
informações de uma carta anônima ou documento apócrifo
envolvendo a honradez e a dignidade de um dos membros das
ilustres famílias que controlam
a mídia brasileira? Algum parlamentar a leria em plenário?
Acusações fraudulentas e caluniosas sobre comissões, sobrepreço ou isenções de importação de papel, tráfico de influência e conflitos de interesse envolvendo empresas, empresários, executivos da mídia poderiam ser plantadas nas colunas
político-mundanas de nossos
jornais como foram aquelas que
envolveram quatro homens públicos de primeira grandeza?
A grande delinquência pode
acabar com a democracia.
Quando consegue, como aqui,
manter-se acima de qualquer
suspeita e, ao mesmo tempo, colocar sob suspeita todos aqueles
que deseja destruir. Nossa cosa
nostra fere frontalmente o Estado de Direito, avacalha a majestade da Justiça e compromete
a credibilidade das demais instituições, inclusive da imprensa.
Outro exemplo dessa tríplice
perversão é o grampo do
BNDES. As fitas resultaram de
uma ação criminosa, o seu teor
foi juntado a um inquérito policial que servirá de base a um
processo judicial cujo sigilo é inviolável.
A despeito dessas injunções legais, as fitas foram divulgadas.
Digamos que a defesa do interesse público sobreponha-se à
defesa da privacidade individual. Mas publicar um documento dessa importância de
forma resumida, descontextualizada e precária é ignorar as
mais comezinhas responsabilidades jornalísticas.
Quando a TV americana divulgou na íntegra as quatro horas do depoimento do presidente Clinton, não o fez por causa
do ibope local -grandes porções eram chatíssimas-, mas
para preservar a integridade do
documento. Revistas e jornais
que o resumiram usaram de habilidade e competência para
resguardar o seu sentido e impedir mal-entendidos. Além
disso, o próprio Legislativo
americano encarregou-se de
disseminar a versão integral.
Se as revistas de informação
que divulgaram as fitas do
BNDES não dispõem de recursos para uma publicação extensiva e criteriosa de uma peça
dessa importância, que mudem
de ramo -o nicho da imprensa
marrom está vazio. Em cima
destas transcrições sumarizadas, obtidas a partir de fitas editadas pelos próprios grampeadores, o Senado fez aquela sessão "histórica" onde alternaram-se os torquemadas de fancaria com as patacoadas gauchescas (nada a ver com a grande oratória gaúcha).
Depois do dramático fim-de-
semana à espera de que alguma
publicação conseguisse contextualizar os excertos anteriores,
o presidente confessou: "Precisamos meditar sobre o que significa dar asas à infâmia" ("Jornal do Brasil", 24/11/98). No dia
seguinte, FHC alongou-se em
observações sobre a mídia em
geral e a brasileira em particular (publicadas em 25/11/98 resumidamente -outra infração).
Os reparos presidenciais não
são novos, desdobram e explicitam outros, mais extensos, que
constam de dois livros recentes:
"O Presidente Segundo o Sociólogo", de Roberto Pompeu de
Toledo (Cia. das Letras, maio
de 1998, págs. 165 a 186), e "O
Mundo em Português, um Diálogo" (conversas com Mário
Soares, editora Paz e Terra,
agosto de 1998, págs. 87 a 98).
A novidade conceitual e drástica da última fala é que o chefe
da nação finalmente abandonou a tese dos "boys scouts" de
que a mídia deve adotar a auto-
regulamentação nos moldes dos
publicitários. Quando tornou
pública essa suprema ingenuidade, FHC levou o merecido piparote (Folha, caderno Ilustrada, 1/11/98). Agora, corrigiu-se e
adotou a posição preconizada
pelos jornalistas por meio de
sua federação: impõe-se uma
nova Lei de Imprensa, democrática e responsável. Auto-regulamentação da imprensa
equivale a convocar os nefastos
para dirigir a Receita Federal (a
metáfora original menciona Al
Capone; de autoria de Conrad
Black, empresário inglês que reclamou da Press Complaints
Comission).
Para que a imprensa não seja
cúmplice involuntária dos
grandes delinquentes que se cevam na democracia, é imperioso dinamizar a tramitação da
nova redação da Lei de Imprensa de autoria do deputado Vilmar Rocha (PMDB-GO). E instalar na abertura da nova legislatura o Conselho de Comunicação Social, órgão auxiliar do
Congresso Nacional previsto na
Constituição de 88 e já regulamentado.
Os Pinochets sem farda não feriram apenas os funcionários
demissionários, o PSDB e o governo. Feriram o Estado. Tentaram um golpe para lembrar os
30 anos do AI-5. Nas asas da infâmia machucaram a democracia.
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