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A doação de órgãos e o horror à própria morte
MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas
Posso entender, mas desaprovo totalmente, as razões de
quem é contra o novo projeto
de lei sobre transplantes. Segundo o projeto, toda pessoa se
torna automaticamente doadora de órgãos (depois de morrer, é claro). Se não quiser, tem
de deixar por escrito. Até agora, vigorava o inverso: ninguém doaria seus órgãos a não
ser que tivesse autorizado oficialmente.
Muita gente se choca com esse projeto. Até o ministro da
Saúde reagiu, no começo, considerando a idéia "meio totalitária". Depois, parece que
mudou de opinião. O governo
Figueiredo, se não me engano,
já tinha proposto coisa parecida. Foi derrotado no Legislativo. E ainda dizem que Figueiredo era atrasado.
Antonio Ermírio de Moraes,
domingo passado, escreveu na
pág. 2 um artigo contra a nova
lei. O artigo era sério, mas o
título não: "A estatização do
corpo humano!" Antonio Ermírio reconhece o problema.
Nos Estados Unidos, 30 mil
pessoas precisam de transplante de rins e só existem 10 mil
disponíveis. Mas, argumenta,
essa lei "é um desrespeito ao
ser humano... é um ato de pilhagem".
"Pilhagem" é uma boa palavra. "Estatização" também. As duas parecem dizer:
"Estou sendo roubado! Meus
rins, meu coração, meu fígado,
até isso querem de mim!"
A reação é compreensível,
mas se origina de uma bobagem fundamental. Se não forem doados, meus órgãos nem
por isso continuarão "comigo". Serão comidos pelos vermes. A escolha, como bem disse
um senador, é entre fazer com que os
rins de alguém sirvam para
salvar uma vida ou sirvam para alimentar lesmas e formigas.
Entre um verme e um ser humano, creio que ninguém hesitará em favorecer o segundo.
Ser pilhado "pelo Estado" e
salvar uma vida é melhor do
que ser pilhado pelos bichos.
É a minha modesta opinião.
Mas o problema desse raciocínio é que ele é macabro demais. Ninguém quer se imaginar comido por vermes; ninguém quer morrer. Aí está o lado compreensível das reações
ao projeto.
É que as pessoas se vêem proprietárias de si mesmas, até
depois da morte. "Meu rim!
Meu coração!" Esquecem que,
depois de mortas, o corpo não
será mais propriedade delas.
Não há "direitos humanos"
em jogo, como quer Antonio
Ermírio no artigo, porque simplesmente não há mais pessoas
vivas, e sim corpos, sendo "pilhados".
Todo o horror diante do projeto é, na verdade, o horror a
contemplar a própria morte.
Meu corpo, minha vida, não
há quem possa tirá-la de mim.
Curiosa concepção de imortalidade, ao mesmo tempo materialista e mística, no fundo
puramente supersticiosa e ignorante.
Imagina-se que os direitos de
uma pessoa, seus direitos humanos, sejam válidos mesmo
depois de ela morrer; seu cadáver tem mandato, possui jurisdição dentro da cova, deve ser
respeitado pelo Estado enquanto nem sequer um verme
o respeita... Só que não há
quem "possua" esse corpo;
não há mais sujeito, só há objeto.
A idéia de "preservar o próprio corpo" não é cristã, é
egípcia. Quem se defende contra a doação de órgãos deveria
ser embalsamado e metido
num sarcófago. Pois aposta
numa imortalidade material,
no fetiche de um corpo que não
é mais seu.
Estamos às voltas com uma
superstição espírita ao contrário. Os espíritas acham que a
alma muda de corpo. Os opositores do projeto acham que o
corpo não pode mudar de alma.
Em última análise, o que está
em discussão nesse projeto é o
horror à própria morte. Justamente por horror a essa idéia é
que as pessoas resistem a doar
seus órgãos. O Estado, a lei, estão eliminando esse problema.
Decreta-se que todo órgão é
propriedade pública. E não
propriedade dos vermes. Eis
um progresso, só que muita
gente não admite que "propriedade pública" seja sinônimo de "propriedade útil" e
prefere a inutilidade, a morte
material, à salvação de vidas
alheias.
Tudo bem. O projeto de lei dá
espaço a quem defenda essa
mistura de superstição e mesquinhez. Se você não quiser
doar seus órgãos, deixe por escrito e pronto. Terá sido um
orgulhoso defensor de seu próprio corpo, mesmo quando este
tiver deixado de ser seu.
Do ponto de vista cristão, o
problema é menos complicado
do que parece. O cristianismo,
ao contrário do que muita
gente acha, não diz simplesmente que as almas terão a vida eterna. O dogma vai mais
além e assegura a ressurreição
dos corpos. É o meu corpo que
viverá para sempre no paraíso.
Eis uma promessa e tanto,
sobre a qual o poeta e clérigo
John Donne (1572-1631) escreveu um sermão memorável.
"São tantas as evidências da
imortalidade da alma, até para a compreensão de um homem comum, que não foi necessário um artigo no Credo
para se fixar essa mesma noção de imortalidade da alma.
A ressurreição do corpo, entretanto, não é perceptível a luz
alguma que não seja a luz da
fé, nem pôde ser fixada por
qualquer garantia menor que
um artigo do Credo."
Donne continua, em sua
magnífica inverossimilhança
barroca: "Onde foram parar
todas as lascas daquele osso
que um disparo de canhão espedaçou e espalhou pelos ares?
Onde se encontram todos os
átomos daquela carne que um
corrosivo carcomeu ou a tísica
contaminou e fez evaporar de
nossos braços e dos outros
membros? Em que dobra, em
que sulco, em que entranha da
terra jazem todas as partículas
das cinzas de um corpo queimado há milhares de anos? Em
que recanto, em que ventrículo
do mar jaz toda a massa gelatinosa de um corpo que se afogou no Dilúvio?"
Para John Donne, "Deus
ainda sabe em que compartimento foi parar cada grão de
pérola, em que parte do mundo se encontra cada partícula
de pó de cada homem". Quando ele acenar, tudo vai juntar-se de novo, e cada corpo
ressurgirá, integralmente, na
bem-aventurança de sua matéria refeita.
De modo que doar um órgão
seria apenas um empréstimo.
Isso se acreditarmos no delírio
dogmático. Pois é claro que o
mesmo átomo de corpo já foi
transplantado em milhares de
outros. Em mim vive talvez o
zinco de Salomão, o ferro de
César, o potássio que alimentou Cleópatra, o cálcio que estruturou o esqueleto de Alexandre. Vai ser difícil lutar
contra todos eles no dia do Juízo...
Mas desse transplante imaginário para o transplante real,
e de que dependem tantos
doentes, há uma diferença séria. E mesmo que, por milagre,
eu recupere meu corpo depois
de morto, como quer John
Donne, como quer a crença
cristã, fará alguma diferença
se eu o tiver doado antes a outros pecadores.
Só que, por medo da morte,
não queremos doar. Que o Estado faça isso por todos, automaticamente, e salve vidas
com transplantes, só posso encarar como boa notícia. Livrou-me de pensar na minha
morte. E pensou na vida dos
outros. Eis uma bela função,
uma função genuinamente pública, do Estado. "Estatizam o
corpo humano!", protesta Antonio Ermírio. Ele que dê graças a Deus.
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