São Paulo, sexta, 29 de janeiro de 1999

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CINEMA "A HORA MÁGICA"
Filme brasileiro mostra a fabricação da fantasia

JOSÉ GERALDO COUTO
da Equipe de Articulistas

O comentário mais comum à saída das pré-estréias de "A Hora Mágica", de Guilherme de Almeida Prado, era o de que "o filme é lindo, mas frio, sem vida".
É difícil contestar esse veredicto, mas convém matizá-lo. "A emoção está na emulsão", já dizia Francis Coppola, referindo-se ao processo de revelação fotográfica e sugerindo que o prazer do cinema brota do próprio milagre de produzir imagens em movimento.
É esse tipo de emoção que se pode encontrar nos filmes de Almeida Prado -não tanto em seu enredo, ou no destino dos personagens, mas na sua tapeçaria visual e sonora, em seu complexo jogo entre luz e sombra, cor e movimento, imagem e som.
Nesse sentido, embora inspirado num conto de Julio Cortázar ("Cambio de Luces"), "A Hora Mágica" tem mais a ver com a postura estética de outro escritor argentino, Jorge Luis Borges.
Assim como a literatura de Borges -também acusada de "fria", "sem alma" e "sem vida"- alimentava-se da própria literatura (ao contrário da de Cortázar, contaminada pela experiência a cada linha), o cinema de Almeida Prado alimenta-se do próprio cinema.
O conto de Cortázar narra uma história simples, a do romance entre o radioator Tito Balcárcel e uma ouvinte, Lucia, apaixonada por sua voz. Depois de trocarem cartas, os dois se conhecem e vão viver juntos. Em vez de adaptar a imagem que faziam um do outro à realidade, eles tentam o oposto.
O filme "A Hora Mágica" -em que Balcárcel é Raul Gazolla e Lucia é a ótima Julia Lemmertz- transplanta essa situação básica para o Brasil de 1950, quando a era do rádio está prestes a ser substituída pelo império da televisão.
Almeida Prado acrescenta o subtema da dublagem de filmes, entrelaça o enredo das radionovelas a uma trama policial e espalha homenagens ao cinema mudo (em especial os clássicos do expressionismo alemão, como "Caligari", "Mabuse" e "Os Espiões").
Por paradoxal que pareça, essa proliferação de signos e elementos aponta para uma concentração de sentido, revelando mais claramente o tema essencial do filme: a fantasia e seus modos de produção.
A ficção pressupõe sempre um jogo entre autor e público, chamado a completar com a própria imaginação o que a obra apenas sugere. No rádio, a partir do som o ouvinte inventa a imagem. No cinema mudo e em preto-e-branco, o espectador imagina o som e a cor. Não é só "me engana que eu gosto". É "me engana que eu ajudo".
"A Hora Mágica" desvenda esse mecanismo recorrendo à mais extrema estilização. Seus personagens não são gente de carne e osso, mas peças de um quebra-cabeças. (Não por acaso, o porteiro cego, um dos vários personagens interpretados no filme por José Lewgoy, monta um quebra-cabeças, servindo-se unicamente do tato.)
Graças a essa opção estética, mantém-se o espectador a distância, impedindo-o de envolver-se afetivamente com o que vê na tela. Daí a frieza apontada por todos.
Mas há momentos belíssimos, como a cena em que Balcárcel sai acendendo luzes pelo apartamento para modificar Lucia, ou a corajosa sequência final, em que um plano é repetido inúmeras vezes na tela da sala de dublagem, provocando um efeito hipnótico e suscitando as mais diversas relações entre som e imagem.
Em outra cena, um assassinato é recriado por meio unicamente de sombras na parede, que acaba entretanto manchada de sangue.
É essa fronteira entre o "real" e a fantasia que o filme de Almeida Prado procura captar e mostrar ao espectador.
É uma fronteira tênue e fugidia, como a "hora mágica" que separa o dia da noite e torna mais vivas todas as cores.
²
Filme: A Hora Mágica Produção: Brasil, 1998 Direção: Guilherme de Almeida Prado Com: Julia Lemmertz, Raul Gazolla, José Lewgoy, John Herbert Quando: estréia hoje, nos cines Espaço Unibanco 1, Lumière 1 e SP Market 6



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