São Paulo, sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

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Crítica/"Estamos Bem Mesmo Sem Você"

Drama familiar visto por olhos de menino é um belo primeiro filme

Longa de estréia do italiano Kim Rossi Stuart, que também está no elenco, evita o melodrama e demonstra maturidade

PEDRO BUTCHER
CRÍTICO DA FOLHA

"Estamos Bem Mesmo Sem Você" é três vezes surpreendente: como filme de estréia, demonstra rara maturidade; como filme de ator, não negligencia a mise-en-scène; e como filme de criança, não cai no insuportável tatibitati.
Pela primeira vez atrás das câmeras, o ator italiano Kim Rossi Stuart (de "Além das Nuvens" e "As Chaves de Casa") alcança efeitos dramáticos raros de se ver hoje, visivelmente alinhados à concepção do mestre italiano Roberto Rossellini.
Não se trata, propriamente, do neo-realismo. Um dos destaques da Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes de 2006, só agora em exibição em São Paulo, "Estamos Bem Mesmo Sem Você" descreve uma realidade muito específica, capturada em toda sua complexidade por uma perspectiva singular. São os olhos do garoto Tommaso (Alessandro Morace) que servem de porta para que se entre na casa dessa família, marcada por um fato pontual: o abandono da mãe.
Ainda mais perturbador que o abandono, porém, é a possibilidade da repetição dele -um sentimento que paira no ar de forma cruel a partir do momento em que ela volta para casa e pede para ser aceita novamente. A suspeita de que a decisão é passageira mantém (ou piora) a instabilidade no seio familiar.
Trazendo o próprio diretor no elenco como Renato, o pai da família, "Estamos Bem Mesmo Sem Você" tem na atuação do garoto Alessandro Morace seu maior trunfo. Não raro, o menino resolve cenas-chave do filme com um simples olhar, transmitindo uma perturbadora complexidade emocional.
Mas essa atuação não está dissociada da direção de Stuart, capaz de criar um ambiente com a necessária dose de liberdade para que o trabalho dos atores ganhe veracidade. Ao mesmo tempo, quase não há aquela frouxidão que essa liberdade costuma imprimir aos filmes "de ator".
Stuart não se esquiva dos problemas que o filme lhe apresenta. Se o tema central de "Estamos Bem Mesmo Sem Você" é um prato cheio para o melodrama barato, ele consegue caminhar pelas convenções do gênero com desenvoltura, sem sucumbir às suas armadilhas.
Constrói personagens ambíguos, mas não os submete a julgamentos de qualquer parte. Na rica construção da família, todos têm substância. Ainda que o menino Tommaso acabe sobressaindo pelas próprias exigências da história, também são muito bem desenvolvidos os personagens da irmã (Marta Nobili) e da mãe (Barbara Bobulova). Curiosamente, apesar de o personagem do pai ser bastante consistente, sobrou para ele a cena menos convincente do filme: quando Renato leva a família para vê-lo trabalhar em um set de filmagem (ele é operador de steady-cam) e desafia, na frente de todos, a autoridade do diretor, tudo parece demasiado forçado para demonstrar uma fraqueza do personagem, apenas.
De qualquer maneira, o importante é que Stuart não tem medo de encarar de frente os momentos de alta dramaticidade do filme. E eles serão vários, algumas vezes altamente comoventes, sem perder a dureza.
E, para um diretor de primeira viagem, é preciso reconhecer a habilidade com que ele recorre a elipses sutis, difíceis de se encontrar em filmes de estreantes. Enfim, uma estréia mais do que promissora.


ESTAMOS BEM MESMO SEM VOCÊ
Produção:
Itália, 2006
Direção: Kim Rossi Stuart
Com: Alessandro Morace, Kim Rossi Stuart e Marta Nobili
Onde: estréia hoje nos cines Bombril, Cinesesc e HSBC Belas Artes
Avaliação: ótimo


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