São Paulo, sexta-feira, 29 de março de 2002

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CRÍTICA

Neurose é tema verdadeiro

DA SUCURSAL DO RIO

"Nem Gravata nem Honra"" é um documentário que confronta oposições. Seu tema é genérico e sério, as relações entre homens e mulheres. Mas seu universo é diminuto e caricato: a cidade interiorana de Cunha, na fronteira de São Paulo e Rio.
Embora o filme se apresente como uma exposição objetiva do que pensam os entrevistados, todo o tempo Masagão e sua equipe interferem na narrativa.
Seus personagens viram espectadores: depois de darem depoimentos eles são mostrados, em janelas nos cantos da tela, vendo e comentando suas entrevistas.
O efeito imediato do contraponto de oposições é humorístico. Certas estatísticas, por exemplo, ganham aura de cientificidade. Mas, quando são atribuídas a um fictício "DataCunha", a veracidade se dissolve em riso.
O efeito duradouro da dialética de choques entre o genérico e o específico, entre objetividade e subjetividade, entre forma e conteúdo aponta para o próprio tema do filme. As relações entre os sexos não são somente biológicas, parece sustentar o filme; formam uma estrutura de diferenças e semelhanças que rege a vida psíquica dos moradores de Cunha numa linguagem, a do inconsciente.
Com isso, pouco do que os entrevistados dizem se sustenta isoladamente. O que eles falam é, no mais das vezes, clichê: as mulheres são mais fiéis, a libertação feminina ameaça o equilíbrio, o machismo ainda domina.
De cambulhada, há queixas de traições e da fofocaiada interiorana que faz com que todos saibam a intimidade de todos. Cada fala ou cena só adquire sentido confrontada às outras. O espectador no cinema, assim como os personagens/espectadores no filme, participa da comédia dos sexos.
Tomados no conjunto e com os comentários, os depoimentos compõem um repertório de frases feitas e comportamentos típicos, um magma que não adquire conformidade fixa, pois que feito de deslocamentos e estranhezas.
Os próprios personagens não se reconhecem: eles se espantam ao se contemplarem na tela. Não se reconhecem porque não se sabem: "Nem Gravata nem Honra" é sobre neurose. De neuróticos, com neuróticos, para neuróticos.
Assim sendo, o princípio ordenador (ou desordenador) do filme advém das idéias do charlatão vienense. Não qualquer Freud, mas o concebido por Jacques Lacan. Um Lacan específico: o que elasteceu o conceito freudiano de "chiste", a tirada bem-humorada.
Trocadilhos, anedotas e oposições agudas de linguagem, assim, se tornam metáforas, significantes que permitem o rasgo rumo ao inconsciente. Sob essa concepção, Lacan nota que a palavra alemã "freud" significa "alegria".
Lacan não está presente em "Nem Gravata nem Honra". Ele é apenas um significante fantasiado de fantasma, que percorre o filme, mas nunca grita "buuu!" O documentário pode ser apreciado apenas pela sua agudeza fescenina. (MARIO SERGIO CONTI)



Nem Gravata nem Honra
   
Direção: Marcelo Masagão
Produção: Brasil, 2001
Quando: a partir de hoje no Espaço Unibanco 3





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