São Paulo, segunda-feira, 29 de abril de 2002

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BIENAL DO LIVRO

Destaque de hoje no Salão de Idéias, a escritora paulista fala do mistério da criação literária e de sua nova obra, em que recupera 22 textos antes dispersos

Um chá com Lygia

FRANCESCA ANGIOLILLO
DA REPORTAGEM LOCAL

"Não é a porta grande. É a pequena. Fica no largo, lá no alto."
Pelo telefone, Lygia Fagundes Telles descreve como chegar ao prédio da Academia Paulista de Letras. No edifício branco do largo do Arouche, o porteiro indica o elevador: "Segundo andar".
O elevador. Os retratos nas paredes. O ambiente parece de certa forma suspenso em uma dimensão do tempo que não a do centro de São Paulo, com sua "rotina devoradora de banco e correio", como diria a própria Lygia.
A elasticidade da memória, que junta lembranças de épocas distintas, é o fio que une os artigos de "Durante Aquele Estranho Chá", o livro que motivara o encontro.
É quinta-feira, dia de chá na academia. A porta entreaberta deixa ver, no salão ao lado, colegas de Lygia numa discussão animada, em frente a uma mesa posta com salgadinhos, café. A escritora chega e pede chá.
No domingo seguinte -ontem- Lygia apresentaria o novo título no estande de sua editora na Bienal do Livro de São Paulo. Hoje, também na Bienal, ela tem encontro com o amigo Carlos Heitor Cony e com o público do Salão de Idéias, no evento Meninos Eu Li (E Escrevi), às 18h.
"Durante Aquele Estranho Chá", o artigo que dá nome ao livro, coloca Lygia em frente de Mário de Andrade, nos anos 40, nos salões da confeitaria Vienense, "ao som de violinos e piano". "Lá sei se estou sendo exata com os fatos, mas as emoções, essas sim, são as mesmas que passo a narrar em seguida", escreve.
A combinação de memória e invenção, que batiza reunião de textos publicada em 2000, está presente na nova coletânea e está no discurso da autora. É possível a rememoração objetiva, na literatura? É possível delimitar precisamente os gêneros literários?
"É muito complicada essa caracterização. Você pode dizer, você disse, memórias. E se eu inventar, nas minhas memórias, eu tenho o direito?", inquire.
"Memória e imaginação, essa constante invasora", evoca Lygia no afetuoso texto dedicado à amiga Hilda Hilst em "Durante Aquele Estranho Chá".
Pelas páginas do livro e pela tessitura de lembrança e ficção da autora, passeiam também Clarice Lispector, Simone de Beauvoir, Carlos Drummond de Andrade, Glauber Rocha, Jorge Amado.
Esses e outros personagens convivem com relatos de viagens, com o discurso de posse na Academia Brasileira de Letras -onde ocupa, desde 1985, a cadeira apadrinhada pelo poeta baiano Gregório de Mattos.
Ao cineasta Paulo Emilio Salles Gomes, seu segundo marido, dedica o emocionado "Um Retrato".
Lygia fala da sensação de redescoberta gerada pela proposta do novo livro (o qual, no dia da entrevista, ainda não vira pronto).
"A idéia desse moço, Suênio Campos de Lucena, de coletar esses textos (de 58, 69, 70, 77, 74, 67, essas datas todas assim), é boa, porque reencontrei os artigos. Acho que foi o Augusto de Campos que disse: "O jornal é o cemitério dos artigos". A maior parte desses artigos foram publicados em jornais. Então eles foram reconduzidos a mim."
A criação da literatura, essa é um mistério. Foi perseguindo suas razões que a jovem Lygia interrogou Mário de Andrade, durante aquele estranho chá. Concluiu que ele não tinha respostas para aquela moça de boina que dizia "me fale, Mário" e ouvia de volta "mas falar do quê, Lygia?".
Durante esse não menos estranho chá, a autora pondera: "Nesse Salão de Idéias, vão perguntar sobre o mistério da criação -que continua um mistério. Porque a natureza humana, por mais que eu tente me aproximar dela, é incontrolável e inexplicável."
"Agora entendo como o Mário sorria e se esgueirava. Porque ele não podia responder, como eu não estou podendo responder hoje. São perguntas que não têm respostas claras, porque na própria natureza profunda dessas perguntas está a ambiguidade. É bom? É ruim? A gente não pode separar as coisas como nos laboratórios de química."
"Tudo depende do acaso e do imprevisto", diria, dias mais tarde, ao telefone, querendo somar à entrevista uma declaração.
"Gosto muito de Wittgenstein", diz, soletrando o nome do filósofo austríaco (1889-1951). "Ele diz uma das coisas mais lindas da filosofia: "O conhecimento é uma ilha cercada de um oceano de mistério. Prefiro o mistério à ilha". Eu também penso assim."



DURANTE AQUELE ESTRANHO CHÁ -0PERDIDOS E ACHADOS - de Lygia Fagundes Telles (org. Suênio Campos de Lucena). Editora: Rocco (tel. 0/xx/21/ 2507-2000). 206 págs. R$ 20.

MENINOS EU LI (E ESCREVI) - Lygia Fagundes Telles e Carlos Heitor Cony falam sobre criação literária. Quando: hoje, às 18h. Onde: Salão de Idéias da Bienal do Livro.




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