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CONTARDO CALLIGARIS
Benjamim Zambraia e Tom Ripley
Dois filmes excelentes, ambos em cartaz neste momento, instigam a reflexão sobre
a possibilidade de uma moral
moderna.
Eis o problema: por prezarmos
nossa autonomia acima de tudo,
não gostamos que um deus seja
nosso pastor e não aceitamos que
a tradição nos diga o que é certo
ou errado. Nessas condições, como orientar nossas vidas? Claro,
julgando e pensando com nossas
cabeças. Mas onde está, em nossas cabeças, uma inspiração que
seja verdadeiramente a nossa e
não apenas um resto de convenções estabelecidas, às quais não
queremos mais obedecer?
"O Retorno do Talentoso Ripley", de Liliana Cavani, nos
apresenta um Ripley maduro,
que vive no Vêneto, numa esplêndida vila renascentista, e divide
seu tempo entre sofisticações gastronômicas, música mais que
clássica e transas eruditas, tocando o cravo a quatro mãos. Ele é
um esteta, ou seja, um sujeito para quem os valores estéticos são a
referência fundamental.
O esteta não se entrega desordenadamente às exigências da carne. Ao contrário, ele educa seus
sentidos de maneira a inventar
uma refinada disciplina de prazeres, que constitui sua regra. Confrontado com a tarefa de encontrar nele mesmo as normas de sua
vida, o esteta responde adequadamente e escolhe o critério talvez
mais subjetivo: o gosto.
Comparados com o Ripley de
Liliana Cavani, os libertinos do
marquês de Sade são os adolescentes da moralidade moderna,
constantemente preocupados em
desafiar a autoridade (divina ou
política) para demonstrar sua autonomia moral. Ripley não se perde em blasfêmias, não se confronta com algum ente supremo. Ele
apenas cuida da estética de seu
prazer.
No intento de acalmar um amigo que parece atormentado pela
dura tarefa de assassinar, Ripley
comenta que não há por que se
preocupar, já que "nobody is watching", ninguém está olhando. A
frase não se refere só à ausência
de testemunhas ou de policiais na
hora do crime. É uma observação
metafísica: ninguém contempla
nossas ações e nos julga do andar
de cima ou do céu. A origem das
regras que regem nossas condutas
está em nós, não nas sobrancelhas
franzidas de um deus ou de um
senhor.
Se ninguém está olhando, podemos cair numa gandaia desregrada, feito trapalhões da liberdade.
Ou então, com Ripley, adotar a
seguinte restrição: tudo é permitido, à condição de obrar com elegância. Matar alguém, como ele
mesmo explica, significa que
amanhã haverá um carro a menos no horário do pico, o que certamente melhorará a estética de
nossas ruas.
Ora, Ripley é um extraterrestre:
nós não somos assim.
Nós nos parecemos muito mais
com o herói de "Benjamim", o filme de Monique Gardenberg, inspirado no romance de Chico
Buarque. Benjamim Zambraia
(atuação memorável de Paulo José) pode nos servir de anti-Ripley:
não lhe falta o desejo de tocar a
vida com bom gosto, mas sua
existência é atormentada (e, portanto, organizada) por uma culpa.
Pouco importa qual foi o ato
nefasto que está na origem da culpa de Benjamim; isso o espectador descobrirá. Mas, sem revelá-lo, podemos perguntar por que o
ato em questão produz, para Benjamim, a culpa que organiza sua
vida.
Benjamim é tão moderno
quanto Ripley: ele não se angustia
por ter transgredido ditados divinos ou tradicionais. O gesto que
mancha seu passado produz culpa porque suscita o desprezo de
seus amigos.
Ou seja, Benjamim vive no mesmo mundo sem deus e sem tradições no qual se movimenta Ripley. Mas, mais próximo da gente,
ele não consegue erigir seu senso
estético em regra moral absoluta;
ele não tem a têmpera do esteta
que, soberanamente, dispensa o
aplauso de seus semelhantes.
Benjamim precisa dos outros:
portanto substitui o olhar divino
pelo olhar do próximo. Ele mede a
indignidade de seu gesto quando
esse lhe vale um cuspe na cara.
O fim da história de Benjamim
Zambraia contém uma outra lição. A culpa é certamente uma
fonte possível da moral, mas é
uma fonte perniciosa pela razão
seguinte: os atos inspirados pela
culpa visam sobretudo à punição
de quem se acha culpado. Ou seja,
se agirmos por culpa, nossa escolha "moralmente certa" não consistirá em fazer algum bem, mas
em dar um jeito para que soframos, enfim, as conseqüências de
nossos erros passados (essa constatação tem algumas implicações
políticas e sociais, mas isso fica
para outra vez).
Até aqui, apareceram três figuras da duvidosa e difícil moralidade moderna: o desbunde sem
regras (no filme de Liliana Cavani, há um cúmplice passado de
Ripley que é um bom exemplo
disso; logicamente, ele acaba
mal), o dandismo gélido do esteta
(Ripley) e a expiação de uma culpa que foi decretada pela desaprovação dos outros (Benjamim).
Para completar a reflexão com
uma nota de esperança, estréia
na semana que vem "Diários de
Motocicleta", de Walter Salles,
inspirado no diário que o jovem
Ernesto Guevara escreveu durante sua viagem pela América Latina, em 1952.
Desde já, vale a pena antecipar
que o filme nos encoraja a sonhar
com uma quarta via. Para quem
não aceita que as regras morais
desçam do céu ou sejam ditadas
pela tradição, talvez não reste
apenas a escolha entre desbunde,
estetismo e culpa. Talvez exista
também a possibilidade de que
uma regra moral surja a partir de
uma experiência de vida. Justamente, o filme de Walter Salles
nos conta como isso aconteceu
com o futuro Che.
ccalligari@uol.com.br
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