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FERNANDO BONASSI
Os lutadores
Agora tiram fotografias.
Muitas. Não me lembro de
terem tirado tantas antes, mas
com a piora do nosso estado tiram sem vergonha. Lançam o jato ardido desses flashes por cima
dos nossos olhos irritados, sacos
cheios e supercílios inflamados.
Em meio a berros soa o gongo.
A banqueta onde estou sentado
some debaixo de mim. Alguns
conselhos que esqueço de ouvir e
um par de mãos me arremessam
novamente pro centro do ringue.
É pra lá, pelo menos, que minhas
pernas me levam. O juiz está se
retirando. Não há sequer uma
mancha de suor em sua camisa
impecável. O canalha ainda gesticula, instigando a disputa! Como
se eu e esse meu adversário não
viéssemos nos batendo com a
maior energia e perseverança à
vista de todos os presentes desde o
primeiro desses assaltos!
Nos batemos no princípio enquanto tínhamos a saúde preparada; continuamos nos acertando
com o mesmo vigor durante toda
a duração do combate, quando o
que perdemos em ímpeto e velocidade ganhamos em precisão e eficiência, e há de ser com a mesma
sanha estimulada que vamos nos
defrontar nesse momento do fim.
Por essas e outras, concentro e
fecho a guarda. Meu sangue está
contido por pomadas e esparadrapos, mas eu o sinto latejar pelo
pescoço, pelo peito, pela virilha...
passos cautelosos, me aproximo.
Meu adversário também. Ocupamos o espaço. Gingamos. Dois ou
três ganchos. A luva passa perto.
Sinto o deslocamento do ar, o
couro estalando no punho. Um
assobio. De repente é a minha vez.
Me projeto. Ele se esquiva. Tento de novo, mas, agora, espero sua
saída. Encaixo um direto de esquerda. Tenho esse tique de canhoto. Sinto seu nariz se espalhar
entre os meus dedos. Estou começando a achar engraçado quando
percebo que ele também me espera desprevenido. Estou com os
dentes à mostra. Mal consigo fechar essa boca. É aí, quando estou
em busca do meu equilíbrio, desguarnecido num sorriso, que ele
me acerta. Imediatamente toca
uma música desafinada dentro
das minhas orelhas quentes.
Meus dentes não parecem firmes, mas acho que nem é de hoje.
Um formigamento se irradia à
partir dos lábios esmagados. Um
licor espesso adocicado na língua.
Por sorte, o impacto me afasta dele. Posso respirar junto das cordas
confortáveis. Alguém grita meu
nome. De novo. Pode ser um recado. Pode ser um palavrão.
Vez por outra o juiz obsceno e
sua camisa cheia de vincos entram em meu campo de visão,
mas quase sempre é o adversário
quem está ali adiante. Permanecemos a centímetros um do outro.
A essa altura de nossa luta ainda nos estudamos, procurando
por algo que não tenhamos encontrado às porradas. Posso ver
que aquele homem tem as suas cicatrizes. Elas também estão rachando e são sanguinolentas e
atravessam seu rosto por todos os
lados, deformando a maneira como é visto. Penso o que ele pensa:
que vamos escolher nos batermos
pelos inchaços. Que é melhor ir direto aos pontos nevrálgicos e encerrar de uma vez por todas esse
compromisso. Depois é ele quem
me assedia. Num ângulo aberto.
Lento. Sei que não quer me acertar. Por enquanto. Ambos precisamos desse ar que nos rodeia e o
aspiramos como drogados.
É minha vez de girar nos calcanhares... uns passos de costas.
Convém dar espaço aos músculos
estirados... e manter a concentração. Distraído por esses pensamentos, meu adversário dirige
seus golpes pra minha cintura.
São quatro ou cinco pesados
"jabs" antes que eu possa bloquear sua iniciativa. Meu baço
permanecerá adormecido desde
então. Tonteio. Recuo estratégico.
Ganho tempo. Pouco. Meus olhos
estão comprimidos por um par de
hematomas. Tusso. Finjo que posso dançar. Percebo com clareza a
intenção do meu adversário.
É um instante. E não posso fazer nada. Suas luvas prensando
minha carne contra os ossos fazem um estrago melado no meu
rosto. O juiz, camisa passada, axila perfumada, segue implorando
que nos matemos depois de mortos. Colhido por esse espanto e essa excitação que o jorro do próprio sangue nos provoca, abro os
braços inocentes, exibindo o local
exato onde os murros raivosos do
meu adversário podem me derrubar à vontade. Me transformo no
seu alvo mais querido.
Apanho. Apanho muito. Bem
no centro de minha dor eu apanho sem satisfação. Sucessivamente. Muito rápido. Muito forte.
Até que pára de doer. É mais um
susto. Fica fácil pra ele. Eu protejo
a cabeça, abro a guarda baixa, ele
me acerta. Eu me dobro numa deferência; ele me caça os talhos da
cara. Eu páro de sentir, e ele pára
de pensar. É assim que deve ser.
Além do mais, essas luzes que
usam pra nos iluminar acabam
nos cegando. Preciso cobrir a testa
pra enxergar em torno. Lá estão
eles. São casados, estão fora de
forma, apanharam muito e estão
sozinhos. Meteram-se a semana
inteira com as suas coisas. Eu entendo que lhes faça bem ver alguém tomar uma boa surra.
Compram salgadinhos e cerveja. Tiram fotografias. Limpam os
dedos gordurosos nas camisas
amarrotadas, xingam e esbravejam. Isso tudo é com você. O juiz
de camisa limpa é uma piada. É
diretamente com você, como se
lhe coubesse abater tudo que os
incomoda na vida. Há quem perca a cabeça numa hora dessas,
mas nós somos profissionais e não
nos deixamos afetar por isso.
Quando me ocorre que eu já tinha aguentado o suficiente, justamente quando penso que todos
ali já tinham recebido o bastante
por seus ingressos é que acontece
de o meu adversário resolver a
questão. Fica escuro. Eu caio. Recobro os sentidos pra ver um braço vencedor ser erguido contra os
refletores. Agora é só esperar que
ele seja coberto de glórias e que
saiam da arena, então eu posso
tomar meu banho e ir pra casa.
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