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São Paulo, terça-feira, 29 de julho de 2003

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FERNANDO BONASSI

Os lutadores

Agora tiram fotografias. Muitas. Não me lembro de terem tirado tantas antes, mas com a piora do nosso estado tiram sem vergonha. Lançam o jato ardido desses flashes por cima dos nossos olhos irritados, sacos cheios e supercílios inflamados.
Em meio a berros soa o gongo. A banqueta onde estou sentado some debaixo de mim. Alguns conselhos que esqueço de ouvir e um par de mãos me arremessam novamente pro centro do ringue. É pra lá, pelo menos, que minhas pernas me levam. O juiz está se retirando. Não há sequer uma mancha de suor em sua camisa impecável. O canalha ainda gesticula, instigando a disputa! Como se eu e esse meu adversário não viéssemos nos batendo com a maior energia e perseverança à vista de todos os presentes desde o primeiro desses assaltos!
Nos batemos no princípio enquanto tínhamos a saúde preparada; continuamos nos acertando com o mesmo vigor durante toda a duração do combate, quando o que perdemos em ímpeto e velocidade ganhamos em precisão e eficiência, e há de ser com a mesma sanha estimulada que vamos nos defrontar nesse momento do fim.
Por essas e outras, concentro e fecho a guarda. Meu sangue está contido por pomadas e esparadrapos, mas eu o sinto latejar pelo pescoço, pelo peito, pela virilha... passos cautelosos, me aproximo. Meu adversário também. Ocupamos o espaço. Gingamos. Dois ou três ganchos. A luva passa perto. Sinto o deslocamento do ar, o couro estalando no punho. Um assobio. De repente é a minha vez.
Me projeto. Ele se esquiva. Tento de novo, mas, agora, espero sua saída. Encaixo um direto de esquerda. Tenho esse tique de canhoto. Sinto seu nariz se espalhar entre os meus dedos. Estou começando a achar engraçado quando percebo que ele também me espera desprevenido. Estou com os dentes à mostra. Mal consigo fechar essa boca. É aí, quando estou em busca do meu equilíbrio, desguarnecido num sorriso, que ele me acerta. Imediatamente toca uma música desafinada dentro das minhas orelhas quentes.
Meus dentes não parecem firmes, mas acho que nem é de hoje. Um formigamento se irradia à partir dos lábios esmagados. Um licor espesso adocicado na língua. Por sorte, o impacto me afasta dele. Posso respirar junto das cordas confortáveis. Alguém grita meu nome. De novo. Pode ser um recado. Pode ser um palavrão.
Vez por outra o juiz obsceno e sua camisa cheia de vincos entram em meu campo de visão, mas quase sempre é o adversário quem está ali adiante. Permanecemos a centímetros um do outro.
A essa altura de nossa luta ainda nos estudamos, procurando por algo que não tenhamos encontrado às porradas. Posso ver que aquele homem tem as suas cicatrizes. Elas também estão rachando e são sanguinolentas e atravessam seu rosto por todos os lados, deformando a maneira como é visto. Penso o que ele pensa: que vamos escolher nos batermos pelos inchaços. Que é melhor ir direto aos pontos nevrálgicos e encerrar de uma vez por todas esse compromisso. Depois é ele quem me assedia. Num ângulo aberto. Lento. Sei que não quer me acertar. Por enquanto. Ambos precisamos desse ar que nos rodeia e o aspiramos como drogados.
É minha vez de girar nos calcanhares... uns passos de costas. Convém dar espaço aos músculos estirados... e manter a concentração. Distraído por esses pensamentos, meu adversário dirige seus golpes pra minha cintura.
São quatro ou cinco pesados "jabs" antes que eu possa bloquear sua iniciativa. Meu baço permanecerá adormecido desde então. Tonteio. Recuo estratégico. Ganho tempo. Pouco. Meus olhos estão comprimidos por um par de hematomas. Tusso. Finjo que posso dançar. Percebo com clareza a intenção do meu adversário.
É um instante. E não posso fazer nada. Suas luvas prensando minha carne contra os ossos fazem um estrago melado no meu rosto. O juiz, camisa passada, axila perfumada, segue implorando que nos matemos depois de mortos. Colhido por esse espanto e essa excitação que o jorro do próprio sangue nos provoca, abro os braços inocentes, exibindo o local exato onde os murros raivosos do meu adversário podem me derrubar à vontade. Me transformo no seu alvo mais querido.
Apanho. Apanho muito. Bem no centro de minha dor eu apanho sem satisfação. Sucessivamente. Muito rápido. Muito forte. Até que pára de doer. É mais um susto. Fica fácil pra ele. Eu protejo a cabeça, abro a guarda baixa, ele me acerta. Eu me dobro numa deferência; ele me caça os talhos da cara. Eu páro de sentir, e ele pára de pensar. É assim que deve ser.
Além do mais, essas luzes que usam pra nos iluminar acabam nos cegando. Preciso cobrir a testa pra enxergar em torno. Lá estão eles. São casados, estão fora de forma, apanharam muito e estão sozinhos. Meteram-se a semana inteira com as suas coisas. Eu entendo que lhes faça bem ver alguém tomar uma boa surra.
Compram salgadinhos e cerveja. Tiram fotografias. Limpam os dedos gordurosos nas camisas amarrotadas, xingam e esbravejam. Isso tudo é com você. O juiz de camisa limpa é uma piada. É diretamente com você, como se lhe coubesse abater tudo que os incomoda na vida. Há quem perca a cabeça numa hora dessas, mas nós somos profissionais e não nos deixamos afetar por isso.
Quando me ocorre que eu já tinha aguentado o suficiente, justamente quando penso que todos ali já tinham recebido o bastante por seus ingressos é que acontece de o meu adversário resolver a questão. Fica escuro. Eu caio. Recobro os sentidos pra ver um braço vencedor ser erguido contra os refletores. Agora é só esperar que ele seja coberto de glórias e que saiam da arena, então eu posso tomar meu banho e ir pra casa.


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