São Paulo, Quarta-feira, 29 de Setembro de 1999
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FESTIVAL DO RIO 99

Roberto Farias celebra meio século de cinema

AMIR LABAKI
enviado especial ao Rio



Roberto Farias terá meio século de cinema no ano 2000. O corrente Festival do Rio antecipa a celebração com uma retrospectiva completa de seus filmes, muitos em cópias novas.
Carioca de Friburgo (130 km do Rio), nascido em 1932, Farias formou-se nas chanchadas, tornou-se companheiro de viagem do cinema novo, levou Roberto Carlos ao cinema e dirigiu a Embrafilme em seus tempos áureos (1974-1978). Teve tanto sucesso como diretor ("Assalto ao Trem Pagador", "Pra Frente, Brasil") quanto como produtor ("Os Paqueras", "Barra Pesada").
Essa visão global da atividade cinematográfica transformou-o num dos raros cineastas brasileiros desde sempre empenhados em filmes de fácil diálogo com o público. Um cinema acessível, mas vigoroso. Pena que se restrinja a 13 títulos como diretor (leia quadro nesta página) e a uma dezena como produtor, sem contar as 14 chanchadas das quais foi assistente de direção.
Sua filmografia não é maior porque Farias jamais hesitou em pôr a mão na massa, visando tirar a produção nacional do ciclo histórico de surtos e crises.
Depois de capitanear a Embrafilme, no período em que o cinema brasileiro se firmou popularmente em mais de um terço do mercado, Farias tornou-se um dos mais precisos e certeiros analistas da indústria audiovisual no Brasil.
O diretor de "Cidade Ameaçada" (1959) e "Selva Trágica" (1964) pode discorrer horas, com veemência e sem consultar papéis, sobre a frágil economia do cinema brasileiro. Mas foi para uma rara entrevista sobre seus filmes que Farias recebeu a Folha, no fim-de-semana passado, em seu apartamento na Gávea.
O encontro matinal foi encaixado na agenda de Farias, atribulado com a direção das gravações de mais um episódio do "Você Decide" da Globo.
"O Hóspede Americano", seu mais recente projeto, sobre o encontro entre o ex-presidente norte-americano Theodore Roosevelt e o Marechal Cândido Rondon, não conseguiu captar os recursos necessários pelas leis de incentivo. "Talvez eu tenha de mudar de projeto", afirma, serenamente resignado. Há 12 anos, Farias está afastado da função de diretor de cinema.
Leia abaixo uma síntese da entrevista.

Folha - Qual foi o cinema que o formou como espectador?
Roberto Farias -
Muito cedo, eram os filmes de bangue-bangue, fitas em séries, Roy Rogers, o Cobra, Tarzan, o Misterioso Doutor Satã. Estou falando da década de 30. Aos 3 anos e meio fugi de casa para ir ao cinema. Desde bebê minha mãe me levava.
Depois, os musicais me divertiam, mas achava muito chato pararem de contar a história para cantar. O que me fascinava mais eram os policiais americanos classe B. Não posso te dizer nem títulos de filme, pois os via como espectador comum.
Lembro-me de uma imagem que me causou um impacto muito grande: a primeira vez que vi Ava Gardner no cinema, andando com umas roupas gregas. E as comédias me agradavam muito, com Bing Crosby, Bob Hope e Dorothy Lamour.

Folha - Qual foi a grande lição da chanchada para você?
Farias -
A chanchada foi que me colocou diante da atuação profissional. Como um diretor fala com os atores, como tirar deles o que pretende, como colocar nas dimensões da tela o que quer contar. A felicidade na chanchada era participar de tudo.


Só coloquei o mundo que eu via no cinema a partir do "Trem Pagador". A parte de que eu menos gosto é a que tem mais influência do cinema


Antes mesmo de ir para a Atlântida, eu via em Friburgo o (Watson) Macedo, o Alinor (Azevedo), o Cajado Filho, o Anselmo Duarte trabalhando nos roteiros. Eu era colega de colégio do irmão do Macedo (Dicson).

Folha - A chanchada é a origem de sua preocupação em fazer filmes de fácil relação com o público?
Farias -
Com certeza teve uma importância muito grande. Eu lembro que o (Watson) Macedo dizia: "Eu não me importo que o espectador mais sofisticado se aborreça um pouco, mas quero que aquele menos preparado entenda o que eu estou contando".
Mas me lembro, quando era muito menino, que meu avô era um bom contador de histórias, e minha mãe excelente.

Folha - Como você se situa em relação ao cinema novo?
Farias -
Eu faço parte de coisas importantes do cinema novo. Glauber (Rocha) estabeleceu as bases filosóficas do cinema novo. Disso eu não faço parte. Sou dez anos mais velho que o cinema novo. Eles não eram meus colegas. Eu tinha uma ligação com o velho cinema e com o novo também.
Glauber me entrevistou fazendo "Cidade Ameaçada". Naquela época meu sonho era fazer um filme de cangaceiro, que nunca fiz. Eu pedi ao Glauber para escrever um roteiro para mim. Ele me mandou uma carta dizendo que não podia.
Naquele momento eu ainda via o mundo por meio do cinema. Só coloquei o mundo que eu via no cinema a partir do "Trem Pagador". Inclusive a parte de que eu menos gosto é a que tem mais influência do cinema. O "Trem Pagador" de que eu mais gosto é aquele em que eu mesmo saí junto com a polícia, procurando o corpo, conversando com o delegado que estava caçando os bandidos, indo a morros.
Isso tudo me deu outra forma de ver o mundo e de colocar o mundo no cinema.

Folha - Qual sua participação na Difilm?
Farias -
Fundamos a distribuidora. Eram 11 sócios: Rex Schindler, Luiz Carlos Barreto, meu irmão Riva, eu, Nelson (Pereira dos Santos), Joaquim (Pedro de Andrade), Glauber, Roberto Santos, Paulo César Saraceni, Cacá (Diegues) e mais um. Não queríamos ganhar dinheiro, mas capitalizar a produção por meio da distribuição. A proposta era ter gente fazendo cinema. Era uma proposta coletiva. Não há a menor dúvida que a Difilm ajudou a impulsionar um momento importante do cinema novo.

Folha - Sua carreira costuma ser dividida entre os filmes chanchadescos, dos primeiros à trilogia com Roberto Carlos e ao último com os Trapalhões, e filmes socialmente mais engajados, como "Cidade Ameaçada" e "Pra Frente, Brasil". Como se reconhece nessa divisão?
Farias -
Eu sou eu mesmo em cada um dos filmes que estou fazendo, seja brincando, seja falando sério. As duas primeiras chanchadas que fiz já tinham alguma preocupação social. "Rico Ri à Toa" já tem o germe do "Assalto ao Trem Pagador". É a história de um grupo que recebe um dinheiro que não deveria poder gastar.

Folha - Vários de seus filmes são marcados pela velocidade, do "Assalto" e "A 300 km por Hora" aos documentários sobre Fittipaldi e Ayrton Senna (para a TV). É consciente?
Farias -
Essas coisas aconteceram. Não sou um aficionado do automóvel. Gosto de imprimir velocidade nos filmes.

Folha - Qual é seu filme brasileiro preferido?
Farias -
Tem dois filmes brasileiros que eu adoro: "Vidas Secas", do Nelson, e "Deus e o Diabo na Terra do Sol", do Glauber.

Folha - E estrangeiro?
Farias -
Isso tem épocas. Mas gosto muito do "Cidadão Kane".


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