São Paulo, sexta-feira, 29 de setembro de 2000

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CINEMA/ESTRÉIAS

"DE REPENTE, NUM DOMINGO"
Truffaut mistura nostalgia e modernidade

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Quem se fiar nas aparências, verá em "De Repente, num Domingo", de François Truffaut, apenas um filme acadêmico, que repete fórmulas.
Lá estão a idéia de filme noir, transposto para a França, o uso do preto-e-branco, uma narrativa perfeitamente conforme os cânones tradicionais.
Quem pensar assim terá um fundo de razão. Mas não mais do que isso. Com efeito, François Truffaut era, dos cineastas da nouvelle vague, o mais apegado ao passado.
Seus filmes, não raro, pareciam feitos para manter vivo o cinema, ou antes, uma idéia específica de cinema: o da era clássica. A sensação de nostalgia que transmite esse filme vem menos do fato de ele ter sido feito em 1983 do que por estar impregnado por um espírito preservacionista.
Agora, quem não se fiar nas aparências terá oportunidade de ver que essa é apenas a capa sob a qual se esconde a modernidade profunda de Truffaut, o que já começa na intriga: Vercel (Jean-Louis Trintignant), corretor imobiliário, se vê, de um momento para o outro, acusado pelo assassinato do amante de sua mulher e, logo a seguir, da própria. Todas as aparências conspiram contra ele. A seu lado, apenas Barbara (Fanny Ardant), a secretária (e atriz amadora) que ele havia despedido nos primeiros cinco minutos de filme.
A postulação clássica, evidente, começa pela maneira de dispor essa intriga: uma polícia que só persegue evidências, um suspeito com todos os motivos para eliminar suas vítimas etc. E, em seguida, uma mulher que coloca uma capa sobre a roupa de atriz e passa a desempenhar o papel de detetive particular sem nem mesmo gritar: "Shazan".
No entanto do acadêmico ao clássico vai uma distância. Em 1983, Truffaut faz um filme que, ao longo dos últimos 17 anos, não fez senão se tornar mais atual, justamente porque seu centro são as aparências do mundo.
Ou antes: muito pós-modernamente, pois é a um mundo de aparências que somos confrontados. Se num filme de Hitchcock, por exemplo, a polícia já se dedicava, exatamente como aqui, a buscar falsos culpados, podia-se pensar que, sob o engano, existia uma verdade que era a essência desse mundo.
Em "De Repente, num Domingo", não estamos longe de um Brian De Palma ou de um Orson Welles: cada signo remete a novos signos; estes, a outros, e assim sucessivamente. A intriga é um jogo de espelhos que remete espectadores e protagonistas a outras imagens, mas essas imagens são apenas outra face, outro espelho.
Quem é Marie-Christine, a mulher assassinada logo no início do filme? Uma dona-de-casa, uma esteticista, uma prostituta? O que é um cinema? Uma casa de espetáculos ou a fachada de um negócio ilegal?
É nesse território instável que Truffaut instala seu filme. Pode-se dizer que, bem classicamente, ele não leva a idéia de simulacro às últimas consequências. Mas é nessa teia de aparências que vamos mergulhar durante quase duas horas, acompanhando a questão que o cineasta se coloca: o que há de verdade numa imagem e como distinguir, neste mundo, o falso do verdadeiro.
A resposta não está propriamente na intriga policial que acompanhamos, mas nas suas bordas. A resposta está na mulher. Ela pode ser vítima (Marie-Christine) ou heroína (Barbara). O falso culpado ou o culpado de fato não se movem senão em razão dela.
Talvez por isso "De Repente, num Domingo" seja um filme exemplar e vivo. Primeiro, porque mobiliza plenamente a paixão de Truffaut pelas mulheres. Segundo, porque entroniza a mulher como a mais bela das aparências do mundo. E a única capaz -em especial "a mulher certa"- de dar sentido às coisas, de redimir o homem de sua errância, bastando que o olhe, além da aparência, e saiba suscitar a verdade que existe nele. A isso também se costuma chamar amor.


De Repente, num Domingo
Vivement Dimanche
     Direção: François Truffaut Produção: França, 1983 Com: Fanny Ardant, Jean-Louis Trintignant, Philippe Laudenbach e Caroline Sihol Quando: a partir de hoje no Top Cine




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