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CINEMA/ESTRÉIAS
"DE REPENTE, NUM DOMINGO"
Truffaut mistura nostalgia e modernidade
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA
Quem se fiar nas aparências,
verá em "De Repente, num
Domingo", de François Truffaut,
apenas um filme acadêmico, que
repete fórmulas.
Lá estão a idéia de filme noir,
transposto para a França, o uso do
preto-e-branco, uma narrativa
perfeitamente conforme os cânones tradicionais.
Quem pensar assim terá um
fundo de razão. Mas não mais do
que isso. Com efeito, François
Truffaut era, dos cineastas da
nouvelle vague, o mais apegado
ao passado.
Seus filmes, não raro, pareciam
feitos para manter vivo o cinema,
ou antes, uma idéia específica de
cinema: o da era clássica. A sensação de nostalgia que transmite esse filme vem menos do fato de ele
ter sido feito em 1983 do que por
estar impregnado por um espírito
preservacionista.
Agora, quem não se fiar nas
aparências terá oportunidade de
ver que essa é apenas a capa sob a
qual se esconde a modernidade
profunda de Truffaut, o que já começa na intriga: Vercel (Jean-Louis Trintignant), corretor imobiliário, se vê, de um momento
para o outro, acusado pelo assassinato do amante de sua mulher e,
logo a seguir, da própria. Todas as
aparências conspiram contra ele.
A seu lado, apenas Barbara
(Fanny Ardant), a secretária (e
atriz amadora) que ele havia despedido nos primeiros cinco minutos de filme.
A postulação clássica, evidente,
começa pela maneira de dispor
essa intriga: uma polícia que só
persegue evidências, um suspeito
com todos os motivos para eliminar suas vítimas etc. E, em seguida, uma mulher que coloca uma
capa sobre a roupa de atriz e passa
a desempenhar o papel de detetive particular sem nem mesmo
gritar: "Shazan".
No entanto do acadêmico ao
clássico vai uma distância. Em
1983, Truffaut faz um filme que,
ao longo dos últimos 17 anos, não
fez senão se tornar mais atual, justamente porque seu centro são as
aparências do mundo.
Ou antes: muito pós-modernamente, pois é a um mundo de
aparências que somos confrontados. Se num filme de Hitchcock,
por exemplo, a polícia já se dedicava, exatamente como aqui, a
buscar falsos culpados, podia-se
pensar que, sob o engano, existia
uma verdade que era a essência
desse mundo.
Em "De Repente, num Domingo", não estamos longe de um
Brian De Palma ou de um Orson
Welles: cada signo remete a novos
signos; estes, a outros, e assim sucessivamente. A intriga é um jogo
de espelhos que remete espectadores e protagonistas a outras
imagens, mas essas imagens são
apenas outra face, outro espelho.
Quem é Marie-Christine, a mulher assassinada logo no início do
filme? Uma dona-de-casa, uma
esteticista, uma prostituta? O que
é um cinema? Uma casa de espetáculos ou a fachada de um negócio ilegal?
É nesse território instável que
Truffaut instala seu filme. Pode-se
dizer que, bem classicamente, ele
não leva a idéia de simulacro às
últimas consequências. Mas é
nessa teia de aparências que vamos mergulhar durante quase
duas horas, acompanhando a
questão que o cineasta se coloca: o
que há de verdade numa imagem
e como distinguir, neste mundo, o
falso do verdadeiro.
A resposta não está propriamente na intriga policial que
acompanhamos, mas nas suas
bordas. A resposta está na mulher. Ela pode ser vítima (Marie-Christine) ou heroína (Barbara).
O falso culpado ou o culpado de
fato não se movem senão em razão dela.
Talvez por isso "De Repente,
num Domingo" seja um filme
exemplar e vivo. Primeiro, porque mobiliza plenamente a paixão de Truffaut pelas mulheres.
Segundo, porque entroniza a mulher como a mais bela das aparências do mundo. E a única capaz
-em especial "a mulher certa"-
de dar sentido às coisas, de redimir o homem de sua errância,
bastando que o olhe, além da aparência, e saiba suscitar a verdade
que existe nele. A isso também se
costuma chamar amor.
De Repente, num Domingo
Vivement Dimanche
Direção: François Truffaut
Produção: França, 1983
Com: Fanny Ardant, Jean-Louis
Trintignant, Philippe Laudenbach e
Caroline Sihol
Quando: a partir de hoje no Top Cine
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