São Paulo, sexta-feira, 29 de setembro de 2000

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CARLOS HEITOR CONY
Muylaert, são Paulo, Barbosa e eu pecador

Somente agora pude ler o belo livro de Roberto Muylaert aparentemente sobre o goleiro Barbosa, seu principal personagem. Mas muito mais do que isso. É um mergulho no tempo, num clima, numa alma nacional que viveu o trauma de uma derrota, derrota que mexeu lá no fundo, no mais fundo território de nossa sensibilidade ingênua, de nosso orgulho quase infantil, de nossa esperança sempre adiada, e de tão adiada, esperança sempre.
Antes de mais nada, um livro muito bem escrito, com trechos dos mais burilados, principalmente no capítulo em que, dando voz a Barbosa, Muylaert monta um depoimento na primeira pessoa, sem parágrafos, sem pontos, corrente da consciência, recurso que Joyce e Guimarães Rosa usaram para obter um relato que explode em diversas direções, mas sempre mantendo a integridade do núcleo. Recurso que não se encontra em qualquer um, somente em escritores realmente maiores.
Trocado em miúdos, e envolvendo enorme universo de informações pontuais, é possível que um ou outro fato possa ter outra versão ou interpretação. De minha parte, só tenho duas observações a fazer: o Abelardo França, que foi presidente da ADEG e chefiou a delegação que disputou o Pan-Americano no Chile, em 1952, era Abelard França. E a batalha pela construção do Maracanã foi devida a três homens: Mario Filho, Ary Barroso e o prefeito Mendes de Morais.
Muylaert cita Mario e o prefeito, mas esquece Ary, que era então vereador, um gigante no plenário da Câmara Municipal, enfrentando a oratória de Carlos Lacerda, que não queria o estádio. E, quando percebeu que a obra era inevitável, iniciou uma campanha para construí-lo em Jacarepaguá.
Feitos os elogios que o livro de Muylaert merece, entro num assunto periférico e pessoal. Sou citado na abertura de um dos capítulos como tendo perdido a fé em Deus no dia da derrota do Brasil diante do Uruguai, 16 de julho de 1950. Muylaert absorveu a informação do livro de Paulo Perdigão, "Anatomia de uma Derrota". Tudo certo. Fui eu próprio que contei ao Perdigão que, não naquele dia, mas no seguinte, deixei de acreditar em Deus. Mas não por causa da derrota em si, da decepção que sofri junto com os 60 milhões de brasileiros da época.
O caso é comprido, tentarei resumi-lo. O apóstolo Paulo confessou que, "se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa doutrina". Ele não questiona os milagres nem os ensinamentos de Cristo. Atém-se ao fundamental: a ressurreição.
E qual a prova da ressurreição? Paulo não conheceu Jesus pessoalmente, aceitou os relatos orais existentes. Relatos fragmentários, exaltados. Como dizia Renan: "O amor é extraordinário! Uma mulher alucinada deu ao mundo um deus ressuscitado".
Do relato de Maria Madalena surgiram outros. A partir daí, Jesus foi visto em vários lugares e situações. E Paulo, anos depois, fez deles o eixo de sua fé e de sua doutrina.
Corte brusco para o dia 16 de julho de 1950.
Numa tarde de sol, diante da maior platéia jamais reunida (200 mil pessoas, mais 22 jogadores, dez gandulas, um juiz, dois bandeirinhas e uma bola), vimos aquela partida a nu, sem alçapões, sem fundos falsos, sem panos pretos com estrelas prateadas, sem os truques dos mágicos profissionais.
Testemunha ocular da história, numa época em que não havia TV nem videoteipe -o próprio Muylaert lembra a importância do espectador antigo, na era pré-TV, que se tornava o profeta, o explicador, a autoridade máxima, o dono da verdade-, quem tivesse visto o jogo pessoalmente tornava-se uma "fonte" insofismável dos atos e fatos da partida. Adquiria uma autoridade pontifical.
No dia seguinte, 17 de julho de 1950, ouvi 200 mil relatos dos lances principais. Nelson Rodrigues garantia que o estádio ouvira em silêncio a bofetada de Obdúlio Varela em Bigode -bofetada que não houve. Um bandeirinha ia anulando o gol do Friaça, Juvenal mandou Barbosa sair do gol, Augusto recebeu uma tesoura de Julio Perez justo na hora em que Gigghia chutava -e por aí vai.
Daí a minha conclusão: se para um fato transparente, à luz do sol, presenciado por tantas pessoas de olhos escancarados, surgiam tantas e tão variadas versões, o que pensar do episódio transcendental de uma ressurreição, ainda no escuro de uma madrugada, num jardim perdido nos arredores de Jerusalém, dois mil anos atrás?
Foi aí que, obedecendo a são Paulo, considerei vã a minha doutrina e deixei de acreditar em Deus. Mas o tempo passou. Cinquenta anos depois, tenho apenas uma certeza: o Brasil perdeu por dois a um naquela tarde, embora o João Luiz de Albuquerque tenha feito um vídeo provando o contrário.
E sei que para Deus existir não precisa do depoimento da razão ou da história. Ele atua na dimensão da Graça. Graça que eu tive após o jogo, ficando inerme, chorando tudo o que devia chorar, misturando motivos para o choro que, parece, foi o último. Choro que afinal deu direito novamente a esperar a Graça.


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