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CARLOS HEITOR CONY
Muylaert, são Paulo, Barbosa e eu pecador
Somente agora pude ler o
belo livro de Roberto Muylaert aparentemente sobre o goleiro Barbosa, seu principal personagem. Mas muito mais do que
isso. É um mergulho no tempo,
num clima, numa alma nacional
que viveu o trauma de uma derrota, derrota que mexeu lá no
fundo, no mais fundo território
de nossa sensibilidade ingênua,
de nosso orgulho quase infantil,
de nossa esperança sempre adiada, e de tão adiada, esperança
sempre.
Antes de mais nada, um livro
muito bem escrito, com trechos
dos mais burilados, principalmente no capítulo em que, dando
voz a Barbosa, Muylaert monta
um depoimento na primeira pessoa, sem parágrafos, sem pontos,
corrente da consciência, recurso
que Joyce e Guimarães Rosa usaram para obter um relato que explode em diversas direções, mas
sempre mantendo a integridade
do núcleo. Recurso que não se encontra em qualquer um, somente
em escritores realmente maiores.
Trocado em miúdos, e envolvendo enorme universo de informações pontuais, é possível que
um ou outro fato possa ter outra
versão ou interpretação. De minha parte, só tenho duas observações a fazer: o Abelardo França,
que foi presidente da ADEG e chefiou a delegação que disputou o
Pan-Americano no Chile, em
1952, era Abelard França. E a batalha pela construção do Maracanã foi devida a três homens: Mario Filho, Ary Barroso e o prefeito
Mendes de Morais.
Muylaert cita Mario e o prefeito, mas esquece Ary, que era então vereador, um gigante no plenário da Câmara Municipal, enfrentando a oratória de Carlos
Lacerda, que não queria o estádio. E, quando percebeu que a
obra era inevitável, iniciou uma
campanha para construí-lo em
Jacarepaguá.
Feitos os elogios que o livro de
Muylaert merece, entro num assunto periférico e pessoal. Sou citado na abertura de um dos capítulos como tendo perdido a fé em
Deus no dia da derrota do Brasil
diante do Uruguai, 16 de julho de
1950. Muylaert absorveu a informação do livro de Paulo Perdigão, "Anatomia de uma Derrota". Tudo certo. Fui eu próprio
que contei ao Perdigão que, não
naquele dia, mas no seguinte, deixei de acreditar em Deus. Mas
não por causa da derrota em si,
da decepção que sofri junto com
os 60 milhões de brasileiros da
época.
O caso é comprido, tentarei resumi-lo. O apóstolo Paulo confessou que, "se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa doutrina". Ele
não questiona os milagres nem os
ensinamentos de Cristo. Atém-se
ao fundamental: a ressurreição.
E qual a prova da ressurreição?
Paulo não conheceu Jesus pessoalmente, aceitou os relatos
orais existentes. Relatos fragmentários, exaltados. Como dizia Renan: "O amor é extraordinário!
Uma mulher alucinada deu ao
mundo um deus ressuscitado".
Do relato de Maria Madalena
surgiram outros. A partir daí, Jesus foi visto em vários lugares e situações. E Paulo, anos depois, fez
deles o eixo de sua fé e de sua doutrina.
Corte brusco para o dia 16 de julho de 1950.
Numa tarde de sol, diante da
maior platéia jamais reunida
(200 mil pessoas, mais 22 jogadores, dez gandulas, um juiz, dois
bandeirinhas e uma bola), vimos
aquela partida a nu, sem alçapões, sem fundos falsos, sem panos pretos com estrelas prateadas,
sem os truques dos mágicos profissionais.
Testemunha ocular da história,
numa época em que não havia
TV nem videoteipe -o próprio
Muylaert lembra a importância
do espectador antigo, na era pré-TV, que se tornava o profeta, o explicador, a autoridade máxima, o
dono da verdade-, quem tivesse
visto o jogo pessoalmente tornava-se uma "fonte" insofismável
dos atos e fatos da partida. Adquiria uma autoridade pontifical.
No dia seguinte, 17 de julho de
1950, ouvi 200 mil relatos dos lances principais. Nelson Rodrigues
garantia que o estádio ouvira em
silêncio a bofetada de Obdúlio
Varela em Bigode -bofetada
que não houve. Um bandeirinha
ia anulando o gol do Friaça, Juvenal mandou Barbosa sair do gol,
Augusto recebeu uma tesoura de
Julio Perez justo na hora em que
Gigghia chutava -e por aí vai.
Daí a minha conclusão: se para
um fato transparente, à luz do sol,
presenciado por tantas pessoas de
olhos escancarados, surgiam tantas e tão variadas versões, o que
pensar do episódio transcendental de uma ressurreição, ainda no
escuro de uma madrugada, num
jardim perdido nos arredores de
Jerusalém, dois mil anos atrás?
Foi aí que, obedecendo a são
Paulo, considerei vã a minha
doutrina e deixei de acreditar em
Deus. Mas o tempo passou. Cinquenta anos depois, tenho apenas
uma certeza: o Brasil perdeu por
dois a um naquela tarde, embora
o João Luiz de Albuquerque tenha feito um vídeo provando o
contrário.
E sei que para Deus existir não
precisa do depoimento da razão
ou da história. Ele atua na dimensão da Graça. Graça que eu
tive após o jogo, ficando inerme,
chorando tudo o que devia chorar, misturando motivos para o
choro que, parece, foi o último.
Choro que afinal deu direito novamente a esperar a Graça.
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