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CINEMA
"eXistenZ"
Ignorado por quase dois anos pelo mercado brasileiro, filme do diretor canadense estréia direto na TV paga amanhã
Cronenberg esmiúça mistérios do organismo
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Ninguém conseguirá dar
uma explicação convincente
para "eXistenZ" não ter chegado
ao Brasil em filme, DVD ou vídeo.
Resta como consolo o fato de passar em TV paga cerca de dois anos
após seu lançamento. Vai ao ar
amanhã, às 21h, pelo canal HBO.
Quem gosta de cinema em geral, dos filmes de David Cronenberg em particular, e não é assinante da HBO, tem portanto duas
possibilidades: uma é restabelecer
a velha instituição do televizinho,
muito popular nos anos 50, e se
aboletar na casa de quem receba o
sinal da HBO; a segunda é pedir a
um amigo que grave o filme para
ver em outra ocasião.
"eXistenZ" é o que se pode chamar de grandioso fecho de um século. Os filmes mais recentes de
Cronenberg -pelo menos desde
"Gêmeos - Mórbida Semelhança"
(1988)- se caracterizavam pela
delicadeza. Talvez delicadeza não
seja a palavra certa, mas "M. Butterfly", "The Naked Lunch",
"Crash", se não abdicavam das
preocupações do diretor sobre as
transformações a que o homem se
tornara susceptível em vista das
novas tecnologias, em todo caso
passavam a olhá-las sob um ângulo mais intelectualizado e por
um maior grau de abstração.
Nesse sentido, "eXistenZ" marca o retorno ao velho Cronenberg,
de "Scanners", "Videodrome",
"Enraivecida" e tantos outros.
Quem não se lembra, por exemplo, das cabeças explodindo em
"Scanners", do homem cujo organismo absorvia um videocassete?
É mais ou menos esse tom que
Cronenberg reencontra. Aqui,
quem pontifica é Andrea Geller
(Jennifer Jason Leigh, soberba),
criadora de um game chamado
eXistenZ. Não importam tanto os
desafios do jogo. Central, no caso,
é que, ao entrar nele, o participante se torna personagem -de maneira literal: é ligado ao game organicamente, por meio de um fio
introduzido em sua espinha.
Ou antes, mais central ainda é
que com isso apaga-se a diferença
entre os mundos real e imaginário. eXistenZ é a própria existência, embora não o seja: é um duplo da vida real, mais real e mais
vivo do que a realidade. Voltamos
ao Cronenberg da fase "nojenta":
consoles com jeito de enormes
amebas, revólveres que cospem
dentes no lugar de balas, substâncias pastosas de natureza ignorada (mas seguramente pouco saudáveis), répteis mutantes de duas
cabeças servidas como refeição.
Sem contar os personagens com
eterno ar de zumbis, ou drogados,
e da obsessão pela contaminação,
pela presença de vírus que ora danificam o jogo, ora se infiltram no
organismo e produzem as mutações (ou ambos). E por aí vai.
Cronenberg esmiúça os mistérios do organismo, desta vez situando-os num futuro indefinido, em que a criação de games
coincide com a criação da própria
vida. Poderia entregar-se ao clichê dos mundos futuros, dos robôs humanizados ("Inteligência
Artificial", "Blade Runner" etc.).
Faz o inverso: inventa um homem
robotizado, cujo corpo é transformado pela própria ciência humana em monstruosidade.
"eXistenZ" é um dos filmes
mais inquietantes e inteligentes
dos anos 90. Parece feito por um
Zé do Caixão com doutorado. É
um programa que não se pode
perder, haja o que houver.
Avaliação:
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