São Paulo, sábado, 29 de setembro de 2001

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CINEMA

"eXistenZ"

Ignorado por quase dois anos pelo mercado brasileiro, filme do diretor canadense estréia direto na TV paga amanhã

Cronenberg esmiúça mistérios do organismo

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Ninguém conseguirá dar uma explicação convincente para "eXistenZ" não ter chegado ao Brasil em filme, DVD ou vídeo. Resta como consolo o fato de passar em TV paga cerca de dois anos após seu lançamento. Vai ao ar amanhã, às 21h, pelo canal HBO.
Quem gosta de cinema em geral, dos filmes de David Cronenberg em particular, e não é assinante da HBO, tem portanto duas possibilidades: uma é restabelecer a velha instituição do televizinho, muito popular nos anos 50, e se aboletar na casa de quem receba o sinal da HBO; a segunda é pedir a um amigo que grave o filme para ver em outra ocasião.
"eXistenZ" é o que se pode chamar de grandioso fecho de um século. Os filmes mais recentes de Cronenberg -pelo menos desde "Gêmeos - Mórbida Semelhança" (1988)- se caracterizavam pela delicadeza. Talvez delicadeza não seja a palavra certa, mas "M. Butterfly", "The Naked Lunch", "Crash", se não abdicavam das preocupações do diretor sobre as transformações a que o homem se tornara susceptível em vista das novas tecnologias, em todo caso passavam a olhá-las sob um ângulo mais intelectualizado e por um maior grau de abstração.
Nesse sentido, "eXistenZ" marca o retorno ao velho Cronenberg, de "Scanners", "Videodrome", "Enraivecida" e tantos outros. Quem não se lembra, por exemplo, das cabeças explodindo em "Scanners", do homem cujo organismo absorvia um videocassete? É mais ou menos esse tom que Cronenberg reencontra. Aqui, quem pontifica é Andrea Geller (Jennifer Jason Leigh, soberba), criadora de um game chamado eXistenZ. Não importam tanto os desafios do jogo. Central, no caso, é que, ao entrar nele, o participante se torna personagem -de maneira literal: é ligado ao game organicamente, por meio de um fio introduzido em sua espinha.
Ou antes, mais central ainda é que com isso apaga-se a diferença entre os mundos real e imaginário. eXistenZ é a própria existência, embora não o seja: é um duplo da vida real, mais real e mais vivo do que a realidade. Voltamos ao Cronenberg da fase "nojenta": consoles com jeito de enormes amebas, revólveres que cospem dentes no lugar de balas, substâncias pastosas de natureza ignorada (mas seguramente pouco saudáveis), répteis mutantes de duas cabeças servidas como refeição.
Sem contar os personagens com eterno ar de zumbis, ou drogados, e da obsessão pela contaminação, pela presença de vírus que ora danificam o jogo, ora se infiltram no organismo e produzem as mutações (ou ambos). E por aí vai.
Cronenberg esmiúça os mistérios do organismo, desta vez situando-os num futuro indefinido, em que a criação de games coincide com a criação da própria vida. Poderia entregar-se ao clichê dos mundos futuros, dos robôs humanizados ("Inteligência Artificial", "Blade Runner" etc.). Faz o inverso: inventa um homem robotizado, cujo corpo é transformado pela própria ciência humana em monstruosidade.
"eXistenZ" é um dos filmes mais inquietantes e inteligentes dos anos 90. Parece feito por um Zé do Caixão com doutorado. É um programa que não se pode perder, haja o que houver.


Avaliação:     


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