São Paulo, quarta-feira, 29 de setembro de 2004

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Percurso estético do escritor vai do inferno ao paraíso

CRÍTICO DA FOLHA

Pode causar espanto, dada a erudição do autor, que a poesia de Eliot faça sucesso no Brasil. Mas faz. A antologia "Poesia", traduzida por Ivan Junqueira, na década de 1980, esgotou três edições em dois meses e figurou na lista dos mais vendidos da revista "Veja".
O pasmo é justificável. Dos arrojos vanguardistas de "A Terra Devastada" à elaborada arquitetura meditativa dos "Quatro Quartetos", sem falar do estilo marcado pela fragmentação constante e pela citação (quer seja de Dante, de Virgílio, dos simbolistas franceses, dos "Upanishad", quer seja de si próprio), nada faria supor tamanho bom êxito.
Mas Eliot, que nasceu nos Estados Unidos e adotou cidadania inglesa aos 28 anos, tem algo que agrada ao leitor, independentemente de este entendê-lo por inteiro ou não. A fragmentação e a citação relacionam-se à idéia de que aquilo que vale não é o "talento individual" do poeta, mas a capacidade de dar vida a "poetas mortos, seus ancestrais".
O ineditismo é uma ilusão para o autor, que observou, em "East Coker": "Dirás que estou a repetir/Alguma coisa que antes já dissera. Tornarei a dizê-lo". Por isso, é costumeiro Eliot formar um poema pela fusão de outros, como "Os Homens Ocos"; ou pela junção de versos não utilizados, como os "Poemas Menores", ou de fragmentos de peça: "Burnt Norton" exibe trechos descartados de seu drama "O Assassínio na Catedral".
Há uma constante imbricação entre arte poética e dramática em Eliot. Desde "Prufrock e Outras Observações", detecta-se o gosto pela criação de personagens (como o quase ridículo Prufrock, que pode ter sido inspirado em "Crapy Cornelia", novela de Henry James), pelo anedótico, pelo prosaico, pelas criação de cenas dramáticas.
É famosa a concepção de Eliot de que o teatro é a forma ideal para a poesia. E vice-versa. Assim, deu-se naturalmente a transição para o drama. Suas peças eram comissionadas pela Igreja Anglicana, à qual se converteu. A primeira foi o quadro sacro "A Rocha" (1934), mais tarde, chamado de "Coros de "A Rocha'", que se incluem no volume de poesia.
No ano seguinte, veio "Assassínio na Catedral", sobre o homicídio de Tomás Becket, arcebispo da Cantuária, por cavaleiros do rei, em 1170. A idéia de martírio atravessa também a tragédia "Reunião de Família" (1939) e "Cocktail Party" (1949). De clima mais ameno são as comédias sérias "O Velho Estadista" (1959) e o "Secretário Particular" (1953).
A despeito do êxito desta última, que rendeu a "lírica soma de um milhão de dólares", e de "Assassínio...", que virou filme e ópera, as peças de Eliot parecem mais afeitas à leitura do que à montagem. Junqueira acredita que elas exigem do espectador "uma grande atenção e cultura", que frustra o público moderno. Ivo Barroso concorda: "Veja o caso de "Assassínio'; quase tudo é preparação para o crime, é a aceitação do martírio; Eliot investe no mental, no poético, nas divagações teológicas", observa.
O caráter, por assim dizer, de revelação piedosa, evidente nas peças, também marca a trajetória poética de Eliot. Na introdução ao volume de poesia, Junqueira mostra que o movimento -do tédio existencial de "Prufrock", percorrendo o horror e as ruínas de "A Terra Devastada", até as visões de glória de "Quarta-Feira de Cinzas" e a atemporalidade dos "Quatro Quartetos"- pode ser visto como uma passagem pelo Inferno e Purgatório até o Paraíso. Ou seja, uma "Divina Comédia" à Eliot.
Há quem julgue que o poeta esmoreceu ao abrir mão do pessimismo demolidor dos primeiros versos e abraçar a esperança na redenção da humanidade. Junqueira não. Sem descartar a importância dos poemas vanguardistas, ele considera os "Quatro Quartetos", por exemplo, da segunda fase, "o ponto mais alto de toda a criação poética eliotiana".
A verdade é que, como em Dante, há quem prefira "O Inferno", enquanto outros, como Umberto Eco, louvam o "Paraíso". Eliot oferece os dois lados. "Assim expira o mundo/ Não com uma explosão, mas com um gemido" são versos de "Os Homens Ocos"; "Devo eu que reinei como águia entre pardais/Agora me tornar chacal entre chacais?", é fala de Becket, em "Assassínio na Catedral". E "Vai, vai, vai, disse o pássaro: o gênero humano/Não pode suportar tanta realidade" está em "Burnt Norton".
No fundo, suas criações aguçam a imaginação porque tangenciam a velha vertigem da humanidade, abismada entre o céu e a terra, entre ser e o não-ser. (MP)


OBRA COMPLETA: POESIA VOL. 1 . Autor: T. S. Eliot. Tradutor: Ivan Junqueira. Editora: Arx. Quanto: R$ 69 (568 págs.).

OBRA COMPLETA: TEATRO VOL. 2. Autor: T. S. Eliot. Tradutor: Ivo Barroso. Editora: Arx. Quanto: R$ 85 (704 págs.).



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