São Paulo, sábado, 29 de outubro de 2005

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"BLOOD AND BONES"

Japonês cultiva o mistério do homem

CLAUDIO SZYNKIER
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Os mitos são antes de tudo humanos. E um humano é um mundo à parte. Ainda que seja um épico, "Blood and Bones", de Yoichi Sai, fala de um homem, mito e demônio para os que o cercaram. Em "off", quem nos conduz é Masao, filho de Kim (Takeshi Kitano), imigrante coreano que chega ao Japão em 1923.
Negociante pragmático, Kim constrói uma fábrica de alimentos e uma fortuna. Mas se trata de um maldito, e é o rancor o tom do relato: sabemos que Kim destroçou a vida de todos, incluindo mulher, amantes e filhos, dominados pela brutalidade de um homem, ou animal, quase invencível.
E haveria encanto em um filme em que o personagem central é isso? Talvez: quanto mais odioso, mais interessante Kim se torna. O que nos assombra no começo é um sentimento de perplexidade e raiva, motivado pela propensão de Kim à crueldade. Não o queremos bem. Mas, na medida em que a história anda, o que passa a nos assombrar é uma interrogação. Por que Kim é assim?
Nesse sentido, age brilhantemente a linguagem épica aplicada por Sai. O épico é um filme que promove uma idéia de consciência esclarecedora: câmeras aéreas mapeiam o que está embaixo. Outras deslizam elegantes e reveladoras. O enquadramento é desenhado para posicionar na tela uma porção de elementos, que nos darão uma fotografia profunda do esplendor e da dor monumental de um homem importante. É um gênero cuja natureza é, portanto, de desvendamento. Mas este é um filme sobre uma interrogação. Ela é o motor das cenas e também nosso caminho.
Embora a saga costure um panorama de transformações culturais e econômicas asiáticas ao longo do século 20, da Coréia comunista à Yakuza moderna, Sai parece manusear o drama épico para nos lembrar que é impossível dissolver a interrogação sobre a natureza de um homem.
Nesse sentido, explora com vigor a figura de Kitano, e ela diz tudo o que precisamos. Sabemos o que ele expressa e faz, mas não o que carrega por dentro. Estupros conjugais e pancadarias domésticas caminham para um registro de filmagem hipnótico, em seqüências alucinadamente intermináveis e orquestradas. Muito para evidenciar a simbiose dessa "máquina", Kim, com a violência.
No final, Kitano ganha uma maquiagem de aparência carcomida, a máscara que denuncia o definhamento de Kim. É uma plástica tão artificial que somos levados a perguntar onde está Kitano debaixo dela. Um humano, mesmo o mais animalesco, é um mundo à parte. E o que está visível, mesmo perverso e vago, é fascinante.


Blood and Bones
    
Direção: Yoichi Sai
Quando: hoje, às 20h30, no Reserva Cultural; amanhã, às 20h50, no Cineclube Vitrine; e dia 2, às 19h20, no Cineclube Vitrine


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