São Paulo, sábado, 30 de janeiro de 1999

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Dramaturgo fez da era elisabetana uma plataforma renascentista

GERALD THOMAS
de Nova York

Em "Shakespeare Apaixonado", não é a obra de William Shakespeare que está em questão. Aliás, neste filme, ela não passa de um mero pano de fundo, um pretexto incidental para o desenrolar de uma bem-humorada e simples história de amor.
O jovem Shakespeare, aqui, não é aquele autor que conseguiu driblar o "status quo" da draconiana Inglaterra elisabetana e reduzir os mistérios da vida a uma ilha ainda menor que seu país, o palco.
Suas inesquecíveis palavras mágicas e seus elaborados complôs usavam e abusavam de referências e lugares, pegavam emprestado conceitos existentes, subvertiam as tradições e se nutriam das fontes mais diversas de informação para retratar os complexos labirintos da mente humana e para colocar em cheque as evidentes contradições entre suas obsessões carnais e sua eterna busca espiritual.
Shakespeare fez da (exausta) era elisabetana uma verdadeira plataforma renascentista, cuja preocupação principal era a criação de um "novo homem", num novo mundo renascido das trevas medievais. Em suas próprias palavras, a Inglaterra era como o "Parque de Netuno; um lugar isolado pela fúria das águas que a protegiam das invasões, um palco psicótico, um lugar propício para a criação de revoltas e de teatro", protagonizado por nada menos que sua própria rainha, Elizabeth 1ª, e que tinha, como coadjuvantes, os "monstros sagrados" da dramaturgia, Christopher Marlowe, Ben Johnson e Thomas Kydman.
O evento teatral era, ainda assim, um ritual da rua, de praça pública ou de corte real, já que o teatro (o "playhouse") propriamente dito era um lugar considerado tão baixo quanto um bordel.
A dramaturgia contemporânea era feita sob medida e distorcida propositalmente para agradar à realeza. Esses dramas também serviam para alimentar um crescente patriotismo inglês e reforçar o nacionalismo surgido da "guerra fria" entre Inglaterra e Espanha.
Christopher Marlowe, autor de "Tamburlaine" e "Doutor Fausto", era o mestre inquestionável da dramaturgia e suas peças eram "profundas", iam fundo na alma do ser humano.
Do jovem Shakespeare, eram esperadas "comédias ligeiras". Mas, apesar de todos os empecilhos, Londres começou a enxergar em "Ricardo 3º" e "Romeu e Julieta" as armadilhas que Shakespeare armava na cabeça do espectador e que escondia dezenas de camadas de subtexto sob os mantos luxuosos de seus reis e amantes.
Em "Hamlet", o paradoxo entre a lucidez (trunfo racionalista de Marlowe) e a tomada de consciência do significado perverso das palavras e sua incapacidade de transformá-las em ação colocou, definitivamente, a obra de Shakespeare na vanguarda de seus contemporâneos. Vítima de críticas e complôs, ele ficava mais amargo e sarcástico a cada nova peça.
Até que, em "A Tempestade", a sua última, um amadurecido e irônico Shakespeare reduz mais uma vez a sua Inglaterra a uma ilha. Seu personagem alter-ego, Próspero, fazia um pacto com Elizabeth 1ª (aqui transformada numa bruxa invisível, Sycorax, dona da ilha), cujos poderes mágicos e misteriosos conseguiriam fazer com que todos os seus inimigos (autores e críticos descritos como políticos oportunistas) naufragassem em alto-mar, buscando refúgio na Ilha encantada de Próspero.
Em "A Tempestade", Shakespeare faz o seu mais brilhante levantamento sobre a era elisabetana e aponta para o futuro. Alvo das mais diversas críticas, aqui Shakespeare se supera e funde, de uma forma mais sofisticada que nunca, macro e microcosmo, criando uma metalinguagem de silenciar qualquer crítico.
Como será que o leitor imagina Shakespeare? Seria ele parecido com aquele tradicional busto de gesso, cavanhaque sisudo e olhar vazio que o perpetuou na história? Pouco se sabe sobre ele, a não ser aquilo que conseguimos deduzir de suas peças. Uma coisa é certa. Todos, absolutamente todos os dramaturgos e teatrólogos modernos têm uma dívida com ele.
Afinal, preso em sua ilha, Shakespeare nos deu a dimensão que hoje temos, ou que nossos personagens têm. É por meio do seu teatro, repleto não de personagens, mas de seres humanos, que Shakespeare nos mostra a redundância dos jogos da retórica e da discriminação de classes, nos faz enxergar o ódio causado pelo nacionalismo e pela supressão do amor.
Shakespeare transformou seus espectadores na era elisabetana, assim como ainda transforma os de hoje, em coadjuvantes num espetáculo inesquecível em que, nas sábias palavras de John Lennon, eles podem apreciar a poesia da vida e viver em paz.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.