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Dramaturgo fez da era elisabetana uma plataforma renascentista
GERALD THOMAS
de Nova York
Em "Shakespeare Apaixonado",
não é a obra de William Shakespeare que está em questão. Aliás,
neste filme, ela não passa de um
mero pano de fundo, um pretexto
incidental para o desenrolar de
uma bem-humorada e simples história de amor.
O jovem Shakespeare, aqui, não é
aquele autor que conseguiu driblar
o "status quo" da draconiana Inglaterra elisabetana e reduzir os
mistérios da vida a uma ilha ainda
menor que seu país, o palco.
Suas inesquecíveis palavras mágicas e seus elaborados complôs
usavam e abusavam de referências
e lugares, pegavam emprestado
conceitos existentes, subvertiam
as tradições e se nutriam das fontes
mais diversas de informação para
retratar os complexos labirintos da
mente humana e para colocar em
cheque as evidentes contradições
entre suas obsessões carnais e sua
eterna busca espiritual.
Shakespeare fez da (exausta) era
elisabetana uma verdadeira plataforma renascentista, cuja preocupação principal era a criação de
um "novo homem", num novo
mundo renascido das trevas medievais. Em suas próprias palavras,
a Inglaterra era como o "Parque de
Netuno; um lugar isolado pela fúria das águas que a protegiam das
invasões, um palco psicótico, um
lugar propício para a criação de revoltas e de teatro", protagonizado
por nada menos que sua própria
rainha, Elizabeth 1ª, e que tinha,
como coadjuvantes, os "monstros
sagrados" da dramaturgia, Christopher Marlowe, Ben Johnson e
Thomas Kydman.
O evento teatral era, ainda assim,
um ritual da rua, de praça pública
ou de corte real, já que o teatro (o
"playhouse") propriamente dito
era um lugar considerado tão baixo quanto um bordel.
A dramaturgia contemporânea
era feita sob medida e distorcida
propositalmente para agradar à
realeza. Esses dramas também serviam para alimentar um crescente
patriotismo inglês e reforçar o nacionalismo surgido da "guerra
fria" entre Inglaterra e Espanha.
Christopher Marlowe, autor de
"Tamburlaine" e "Doutor Fausto",
era o mestre inquestionável da
dramaturgia e suas peças eram
"profundas", iam fundo na alma
do ser humano.
Do jovem Shakespeare, eram esperadas "comédias ligeiras". Mas,
apesar de todos os empecilhos,
Londres começou a enxergar em
"Ricardo 3º" e "Romeu e Julieta"
as armadilhas que Shakespeare armava na cabeça do espectador e
que escondia dezenas de camadas
de subtexto sob os mantos luxuosos de seus reis e amantes.
Em "Hamlet", o paradoxo entre a
lucidez (trunfo racionalista de
Marlowe) e a tomada de consciência do significado perverso das palavras e sua incapacidade de transformá-las em ação colocou, definitivamente, a obra de Shakespeare
na vanguarda de seus contemporâneos. Vítima de críticas e complôs, ele ficava mais amargo e sarcástico a cada nova peça.
Até que, em "A Tempestade", a
sua última, um amadurecido e irônico Shakespeare reduz mais uma
vez a sua Inglaterra a uma ilha. Seu
personagem alter-ego, Próspero,
fazia um pacto com Elizabeth 1ª
(aqui transformada numa bruxa
invisível, Sycorax, dona da ilha),
cujos poderes mágicos e misteriosos conseguiriam fazer com que
todos os seus inimigos (autores e
críticos descritos como políticos
oportunistas) naufragassem em alto-mar, buscando refúgio na Ilha
encantada de Próspero.
Em "A Tempestade", Shakespeare faz o seu mais brilhante levantamento sobre a era elisabetana e
aponta para o futuro. Alvo das
mais diversas críticas, aqui Shakespeare se supera e funde, de uma
forma mais sofisticada que nunca,
macro e microcosmo, criando uma
metalinguagem de silenciar qualquer crítico.
Como será que o leitor imagina
Shakespeare? Seria ele parecido
com aquele tradicional busto de
gesso, cavanhaque sisudo e olhar
vazio que o perpetuou na história?
Pouco se sabe sobre ele, a não ser
aquilo que conseguimos deduzir
de suas peças. Uma coisa é certa.
Todos, absolutamente todos os
dramaturgos e teatrólogos modernos têm uma dívida com ele.
Afinal, preso em sua ilha, Shakespeare nos deu a dimensão que
hoje temos, ou que nossos personagens têm. É por meio do seu teatro, repleto não de personagens,
mas de seres humanos, que Shakespeare nos mostra a redundância dos jogos da retórica e da discriminação de classes, nos faz enxergar o ódio causado pelo nacionalismo e pela supressão do amor.
Shakespeare transformou seus
espectadores na era elisabetana,
assim como ainda transforma os
de hoje, em coadjuvantes num espetáculo inesquecível em que, nas
sábias palavras de John Lennon,
eles podem apreciar a poesia da vida e viver em paz.
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