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RELANÇAMENTO - CRÍTICA
"Matéria de Memória" é retrato dos abandonados
MARCELO RUBENS PAIVA
especial para a Folha
O escritor carioca Carlos Heitor
Cony, 72, saiu em definitivo de seu
auto-exílio hibernal de 23 anos.
Sua produção está vitalizada. De
1995 para cá, foram publicados os
premiados "Quase Memória"
(1995), "O Piano e a Orquestra"
(1996), "A Casa do Poeta Trágico"
(1997) e seu romance de estréia, "O
Ventre" (1958), entre outras obras
que estavam fora de catálogo.
Na virada do ano, em suas férias,
Cony, colunista e membro do Conselho Editorial da Folha, escreveu
um romance em 11 dias, "Romance
sem Palavras", a ser publicado em
abril. É Cony ganhando os prêmios
Jabuti, Nestlé e Machado de Assis.
É Cony nas estantes das livrarias. E
a constatação não é outra: está bem
vivo um dos maiores romancistas
da literatura contemporânea brasileira. E viva está sua memória,
combustível de sua obra.
"Matéria de Memória", seu quinto romance, escrito em 1962, está
sendo republicado. É um legítimo
Cony, cuja obra não deveria ter títulos, mas números, já que seus livros parecem volumes de uma
mesma coleção.
A matéria Cony flutua sobre uma
só correnteza: a do niilismo. As relações são incompletas. Há, em
"Matéria de Memória", rusgas
aparentemente insolúveis entre os
personagens. Há doenças contagiosas. Há um pai vetor que procura desenhar o futuro de seus filhos,
mas é malsucedido. Há uma mãe
ausente. Há um filho preterido pelo preferido. E há, lógico, muitos
amores impossíveis. A morte está
ao lado. A solidão é azul e enorme.
No Brasil, a ressaca da renúncia
de Jânio Quadros. No mundo, o
impasse da revolução cubana. Nas
telas, Glauber e Godard. Na vitrola,
"triste é viver na solidão..."
˛
Os abandonados
"Matéria de Memória" é o romance dos abandonados, viúvos e
traídos. São três os narradores, o
pintor Tino, sua sogra, Selma, e o
filho dela, João.
Tino estudou num internato.
Perdeu a virgindade com um colega que seria uma mulher travesti
(seria?). Seu pai morreu de lepra, e
sua madrasta se casou com seu irmão. Tino se casou com Julinha,
que também morreu. Selma, a sogra, torna-se sua obsessão.
Ele mora sozinho, em Copacabana. Não tem telefone. Contrata empregadas pagando o dobro do salário para que elas durmam com ele.
Recebe um telegrama que avisa
que Selma está para voltar. Pede a
sua empregada que o tranque e leve a chave. Quer estar longe dessa
doença, o amor.
Selma se parece com Greta Garbo. Ficou viúva jovem. Está no
avião da Boac retornando ao Brasil. Conta sua história. Seu marido,
ironia, foi atropelado pelo carro da
embaixada do Ceilão. Sua filha, Julinha, morreu. Seu filho, João, está
por aí.
Enquanto o avião sobrevoa a costa brasileira, ela recebe a cantada
de um passageiro, André (o mesmo nome de seu ex-marido). Ele
quer se casar com ela. Ela já teve
um marido, 19 amantes e avisa: "Se
ninguém estiver me esperando no
aeroporto, caso-me com você".
João foi abandonado pela mulher (que "botou chifres" nele) e
pela mãe. Virou um comunista. É
um infeliz. Foi também avisado da
chegada da mãe. Irá esperá-la, no
aeroporto?
A trama está esparramada. Selma e Tino vivem um amor secreto,
bloqueado pelas circunstâncias
inadiáveis. Se encostaram uma
única vez, ao lado do leito em que a
filha dela (esposa dele) morria.
A tristeza é dissimulada pela apatia diante do destino. As regras foram impostas antecipadamente. A
vida é sem sentido, já que a transformação é uma rocha densa, imóvel, impenetrável. "Matéria de Memória" é um Cony existencialista.
É um romance completo. É de dar
inveja a muitos escritores.
Livro: Matéria de Memória
Autor: Carlos Heitor Cony
Lançamento: Companhia das Letras
Quanto: R$ 19,50 (197 págs.)
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