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Sob o signo de Plutão
ALBERTO DINES
Colunista da Folha
Não foi manchete de jornal,
não mereceu esgares nos telejornais, não provocou verbos
espetaculares como "despencar", "fulminar" ou expressões
tipo "revolução no cosmos" e
"fim do mundo".
Plutão, o menor planeta do
sistema solar e o mais distante
da Terra, recém-descoberto
(em 1930), não tem "status", foi
rebaixado. Candidato a algum
clube grã-fino dele dir-se-ia
que está ameaçado de bola preta. A notícia não abalou mercados e almas. A gangorra da
reclassificação de bancos e países no ranking da credibilidade
internacional pela Moody's
provoca mais arrepios do que a
hipótese de Plutão ser inferiorizado e etiquetado como asteróide.
Ninguém vaticinou que Netuno ou Urano, vizinhos de Plutão, serão "a bola da vez". Não
se sabe a reação dos plutônios
(ou plutonenses) diante da informação gerada pela Internet
de que a União Astronômica
Internacional convocou seus
8.300 associados para decidir o
"downgrading" celestial.
Plutão está tão distante que
cada órbita completa-se em
dois séculos e meio. Teremos,
pois, que esperar algum tempo
para saber se um jornal nos
confins sombrios do cosmos
propôs algum tipo de represália contra o rebaixamento cogitado pelos terráqueos.
Astrônomos e astrólogos (que
até o Renascimento eram ofícios próximos) trataram do
ocaso de Plutão com fleuma
britânica. Nem a hipótese admitida por alguns cientistas de
que o planetóide possa sofrer
um desgaste e se autodestruir
chegou a assustar. Ao contrário
dos economistas, hoje mais excitados e excitáveis do que
bombeiros, acionando os alarmes do Juízo Final cada vez
que os índices não confirmam
suas convicções.
Estamos por demais envolvidos com a globalização para
prestar atenção à cosmogonia.
Razão pela qual foi minimizada a notícia publicada na
quinta-feira de que Caronte, a
minúscula lua do mesmo e insignificante Plutão, foi promovida ao fechadíssimo círculo de
astros do sistema solar capazes
de abrigar vida (os outros:
Marte, Vênus e Europa, uma
das luas de Júpiter). O Clube
dos Quatro, doravante conhecido como V-4, é mais importante do que nomenclaturas e
classificações.
Plutão baixou de cotação ou
cresceu na expectativa? Questão de ângulo. O planetinha
nunca teve bom ibope: na mitologia sempre foi visto como
entidade subterrânea, infernal. Em astrologia, Plutão rege
Escorpião, com imagem também injustamente negativa.
Na verdade, significa transformação, mudança. Costuma-se
associá-lo a perdas e desastres,
mas representa a vontade,
também a inevitabilidade, a
regeneração ("Enciclopédia de
Astrologia", Makron, 1998).
Astrólogos trabalham com
trânsitos, passagens, combinações, órbitas largas e signos
abrangentes, que, ao contrário
do simplismo das fábulas, costumam ser complexos. Seus
lapsos são largos porque a vida
é larga. Por isso menos apocalípticos do que jornalistas, em
geral induzidos pela ciclotimia
da periodicidade e a angústia
dos fechamentos. Daí certa desatenção para a coerência e a
concatenação inclusive das
cassandras que lhes dão suporte.
Os mesmos que clamavam pelo fim da âncora cambial, hoje,
menos de duas semanas depois
de cortadas as amarras, parecem não aguentar as inevitáveis marolas. Supõe-se que deviam conhecer a matéria, inclusive os efeitos perversos no
tocante à especulação e aos
preços.
Não obstante, já querem alguma outra poção milagrosa
para atalhar o enjôo e o pânico.
De preferência, uma violenta
estancada. Como nas prévias
eleitorais, o sistema mediático
deixa-se levar pela magia dos
números sem atinar para o fato
de que a manchete de hoje, a
respeito do pregão de ontem,
alimentará as atitudes de amanhã.
De baixo-astral a primeira
página da Folha no último domingo. Em inusitado editorial,
atrela-se a uma posição extremada e perigosa: advoga a centralização cambial, espécie de
concordata ou moratória consentida e não menos danosa. É
como se Plutão propusesse ao
Conselho dos Planetas o fim do
equilíbrio gravitacional do sistema solar. Deixo para os especialistas a discussão sobre os
méritos da proposta e os efeitos
que sua exposição num jornal
desta importância tiveram nos
dias seguintes.
O que importa discutir é a
equidistância, o equilíbrio e,
sobretudo, as cautelas que a
imprensa deve adotar quando
veicula alternativas e opções.
Um jornal tem o dever de manifestar suas opiniões em questões de princípio, mas a adesão
ostensiva em matéria tão controversa e tão explosiva pode
colocar sob suspeita sua imparcialidade na condução do debate. Mais legítima foi a montra de opiniões pessoais expostas ao lado. Apesar da clara
preferência pelos autores de inclinação apocalíptica, não foi o
jornal que as expressou. Foi o
lado Plutão dos articulistas.
Por diversas razões sou levado a lembrar semanalmente o
glorioso "Correio da Manhã".
O jornalão pretendia o papel
de "king-maker", implacável
destruidor de ministros e políticas. Não se contentava em ser
um dos jornais mais qualificados, primorosamente escrito,
inteligente. Queria influir e
mostrar que influía. Também
não o satisfazia ser uma empresa altamente lucrativa, moderna, razoavelmente independente. Queria mais: ser um
ator, de preferência protagonista, no teatro político. Ferrou-se.
Mesmo quando a grande imprensa associada à conspiração de 1964 contentava-se em
acompanhar pelo noticiário o
movimento militar, o "Correio
da Manhã", por galhardia ou
arrogância, pretendeu ir mais
longe: em editoriais na primeira página iniciou sozinho a defenestração de Jango. Poucas
semanas depois, arrependia-se
com os descaminhos ditatoriais. Tornou-se o principal
porta-voz da oposição democrática. Os militares não o perdoaram, fechou (1974).
Defronto-me com o "Correio"
semanalmente quando vou ao
Rio para a apresentação do
"Observatório da Imprensa".
Em frente à TVE, na Gomes
Freire, um prédio de seis andares, outrora moderno, com um
caprichoso monograma "CM"
no portão art deco -intocado,
silencioso, inútil, vazio. Não tenho medo de fantasmas, mas
esse assusta.
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