São Paulo, sábado, 30 de janeiro de 1999

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Sob o signo de Plutão

ALBERTO DINES
Colunista da Folha

Não foi manchete de jornal, não mereceu esgares nos telejornais, não provocou verbos espetaculares como "despencar", "fulminar" ou expressões tipo "revolução no cosmos" e "fim do mundo".
Plutão, o menor planeta do sistema solar e o mais distante da Terra, recém-descoberto (em 1930), não tem "status", foi rebaixado. Candidato a algum clube grã-fino dele dir-se-ia que está ameaçado de bola preta. A notícia não abalou mercados e almas. A gangorra da reclassificação de bancos e países no ranking da credibilidade internacional pela Moody's provoca mais arrepios do que a hipótese de Plutão ser inferiorizado e etiquetado como asteróide.
Ninguém vaticinou que Netuno ou Urano, vizinhos de Plutão, serão "a bola da vez". Não se sabe a reação dos plutônios (ou plutonenses) diante da informação gerada pela Internet de que a União Astronômica Internacional convocou seus 8.300 associados para decidir o "downgrading" celestial.
Plutão está tão distante que cada órbita completa-se em dois séculos e meio. Teremos, pois, que esperar algum tempo para saber se um jornal nos confins sombrios do cosmos propôs algum tipo de represália contra o rebaixamento cogitado pelos terráqueos.
Astrônomos e astrólogos (que até o Renascimento eram ofícios próximos) trataram do ocaso de Plutão com fleuma britânica. Nem a hipótese admitida por alguns cientistas de que o planetóide possa sofrer um desgaste e se autodestruir chegou a assustar. Ao contrário dos economistas, hoje mais excitados e excitáveis do que bombeiros, acionando os alarmes do Juízo Final cada vez que os índices não confirmam suas convicções.
Estamos por demais envolvidos com a globalização para prestar atenção à cosmogonia. Razão pela qual foi minimizada a notícia publicada na quinta-feira de que Caronte, a minúscula lua do mesmo e insignificante Plutão, foi promovida ao fechadíssimo círculo de astros do sistema solar capazes de abrigar vida (os outros: Marte, Vênus e Europa, uma das luas de Júpiter). O Clube dos Quatro, doravante conhecido como V-4, é mais importante do que nomenclaturas e classificações.
Plutão baixou de cotação ou cresceu na expectativa? Questão de ângulo. O planetinha nunca teve bom ibope: na mitologia sempre foi visto como entidade subterrânea, infernal. Em astrologia, Plutão rege Escorpião, com imagem também injustamente negativa. Na verdade, significa transformação, mudança. Costuma-se associá-lo a perdas e desastres, mas representa a vontade, também a inevitabilidade, a regeneração ("Enciclopédia de Astrologia", Makron, 1998).
Astrólogos trabalham com trânsitos, passagens, combinações, órbitas largas e signos abrangentes, que, ao contrário do simplismo das fábulas, costumam ser complexos. Seus lapsos são largos porque a vida é larga. Por isso menos apocalípticos do que jornalistas, em geral induzidos pela ciclotimia da periodicidade e a angústia dos fechamentos. Daí certa desatenção para a coerência e a concatenação inclusive das cassandras que lhes dão suporte.
Os mesmos que clamavam pelo fim da âncora cambial, hoje, menos de duas semanas depois de cortadas as amarras, parecem não aguentar as inevitáveis marolas. Supõe-se que deviam conhecer a matéria, inclusive os efeitos perversos no tocante à especulação e aos preços.
Não obstante, já querem alguma outra poção milagrosa para atalhar o enjôo e o pânico. De preferência, uma violenta estancada. Como nas prévias eleitorais, o sistema mediático deixa-se levar pela magia dos números sem atinar para o fato de que a manchete de hoje, a respeito do pregão de ontem, alimentará as atitudes de amanhã.
De baixo-astral a primeira página da Folha no último domingo. Em inusitado editorial, atrela-se a uma posição extremada e perigosa: advoga a centralização cambial, espécie de concordata ou moratória consentida e não menos danosa. É como se Plutão propusesse ao Conselho dos Planetas o fim do equilíbrio gravitacional do sistema solar. Deixo para os especialistas a discussão sobre os méritos da proposta e os efeitos que sua exposição num jornal desta importância tiveram nos dias seguintes.
O que importa discutir é a equidistância, o equilíbrio e, sobretudo, as cautelas que a imprensa deve adotar quando veicula alternativas e opções.
Um jornal tem o dever de manifestar suas opiniões em questões de princípio, mas a adesão ostensiva em matéria tão controversa e tão explosiva pode colocar sob suspeita sua imparcialidade na condução do debate. Mais legítima foi a montra de opiniões pessoais expostas ao lado. Apesar da clara preferência pelos autores de inclinação apocalíptica, não foi o jornal que as expressou. Foi o lado Plutão dos articulistas.
Por diversas razões sou levado a lembrar semanalmente o glorioso "Correio da Manhã". O jornalão pretendia o papel de "king-maker", implacável destruidor de ministros e políticas. Não se contentava em ser um dos jornais mais qualificados, primorosamente escrito, inteligente. Queria influir e mostrar que influía. Também não o satisfazia ser uma empresa altamente lucrativa, moderna, razoavelmente independente. Queria mais: ser um ator, de preferência protagonista, no teatro político. Ferrou-se.
Mesmo quando a grande imprensa associada à conspiração de 1964 contentava-se em acompanhar pelo noticiário o movimento militar, o "Correio da Manhã", por galhardia ou arrogância, pretendeu ir mais longe: em editoriais na primeira página iniciou sozinho a defenestração de Jango. Poucas semanas depois, arrependia-se com os descaminhos ditatoriais. Tornou-se o principal porta-voz da oposição democrática. Os militares não o perdoaram, fechou (1974).
Defronto-me com o "Correio" semanalmente quando vou ao Rio para a apresentação do "Observatório da Imprensa". Em frente à TVE, na Gomes Freire, um prédio de seis andares, outrora moderno, com um caprichoso monograma "CM" no portão art deco -intocado, silencioso, inútil, vazio. Não tenho medo de fantasmas, mas esse assusta.



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