|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LIVROS/LANÇAMENTOS
MÚSICA
Sai no Brasil livro de 70 do artista negro, que está preso nos EUA
"Abutre" continua a rondar Gil Scott-Heron
RODRIGO CARNEIRO
FREE-LANCE PARA A FOLHA
Em 1975, o cantor, poeta, ficcionista, pianista e compositor norte-americano Gil Scott-Heron, 52, disse ao jornal "Village
Voice": "Nunca houve falta de inquietação na comunidade negra,
só falta de direção". Passadas quase três décadas, a declaração do
autor do romance "Abutre" (que
chega agora ao Brasil) não só se
confirma, mas apresenta contornos de ironia trágica.
Desde novembro Scott-Heron
está preso, e permanecerá assim
pelos próximos três anos. A decisão da Suprema Corte de Nova
York foi o ápice dos desacertos
químicos do artista. Recentemente, policiais o flagraram portando
cocaína e crack.
Inicialmente, ficou decidido
que ele participaria de um longo
programa de reabilitação. Por não
considerar a própria dependência, ele apelou da decisão, e um
novo julgamento foi marcado.
Dessa vez, Scott-Heron não se
apresentou à corte. Quatro semanas depois, foi preso novamente,
no Harlem, e sentenciado. "Você
teve todas as oportunidades para
se ajudar, mas nunca mostrou interesse", disse a juíza.
No site da editora escocesa Payback Press (especializada em literatura afro-americana e detentora dos direitos de publicação dos
escritos de Scott-Heron), www.
canongate.com/payback, o editor e amigo Jamie Byng desabafa:
"Ele não é criminoso, e sim uma
vítima de lunáticas e hipócritas
leis que aumentam o dano que as
drogas causam à sociedade".
No entanto, a obra combativa e
íntegra do artista é maior do que
seu inferno pessoal. Nascido em
Chicago, em 49, filho de uma acadêmica de biblioteconomia e de
um jogador de futebol de origem
jamaicana, teve a dimensão do
preconceito racial ainda na primeira infância -era uma das três
únicas crianças negras na escola.
Com o divórcio dos pais, foi morar no Tennessee com a avó, por
quem foi iniciado em blues e jazz.
Aos 13, foi viver com a mãe em
Nova York, no bairro negro do
Bronx. Na escola particular, estudou a produção literária dos autores brancos. E nas ruas e bibliotecas públicas, seguiu os passos dos
expoentes do chamado Harlem
Renaissance (período de grande
efervescência da literatura afro-americana, no entre-guerras).
Sempre influenciado pelo poeta
negro Langston Hughes, lançou
em 70 seu primeiro romance,
"Abutre". Meses depois, acompanhado por percussionistas, gravou alguns de seus poemas no
disco "A New Black Poet: Small
Talk at 125th & Lenox". No álbum estão os fundamentos do
que mais tarde seria conhecido
como rhythm and poetry, o rap.
Aos 21 anos, Scott-Heron sabia
que os paradigmas da comunidade negra dos anos 60 "viveram rápido e morreram jovens", para
usar um slogan da época.
O ideário paz e amor já não significava mais nada. Adversários
políticos, Martin Luther King e
Malcolm X foram igualmente assassinados. A milícia dos Black
Panthers começava a ter as estruturas abaladas pela ofensiva do
FBI. E a cultura das drogas assumia tons bastante sombrios.
"Abutre" é o retrato desse vazio
ideológico. Tendo por ponto de
partida a morte de um traficante,
faz uma alegoria sem maniqueísmo do dilema do jovem negro
metropolitano.
Seu segundo e último romance
chamou-se "The Nigger Factory"
(72). Um ano antes, chegara às lojas o segundo álbum, "Pieces of
Man". Dessa vez, a ladainha militante incorporava a linguagem do
jazz, do soul e do blues. O canto
barítono melancólico e o piano
dão o tom aos clássicos "The Revolution Will Not Be Televised" e
"Lady Day and John Coltrane".
No encontro com o multiinstrumentista Brian Jackson, na universidade, estabeleceu uma parceria inspirada e duradoura.
O trabalho com Cecil Taylor,
produtor de Stevie Wonder, em
78, talvez seja seu momento de
maior êxito comercial. A Guerra
Fria, a mídia americana, o apartheid sul-africano e o panorama
sociopolítico do Terceiro Mundo
estavam na mira do letrista.
A década seguinte não seria tão
pródiga a partir do final da parceria com Brian Jackson, em 80, e da
saída da gravadora Arista, em 85.
Nos anos seguintes, sua música
sobreviveu por meio dos netos.
Rappers sofisticados como KRS-One, A Tribe Called Quest e P.M.
Dawn samplearam suas batidas e
dizeres até que, em 94, ele ressurgiu em grande estilo, com "Spirits". A faixa "Message to the Messagers" sugeria auto-reflexão à
descerebrada geração gangsta.
Em 2001, após um grande hiato
pontuado por queixas de agressão pela ex-mulher e excessos variados, Scott-Heron voltou a se
apresentar ao vivo. Apesar do
semblante cadavérico, aparentava estar renascido e em direção
contrária às armadilhas do gueto.
Parecia. Hoje, está preso. E, lá em
cima, o abutre espreita.
ABUTRE - De: Gil Scott-Heron.
Lançamento: Conrad. Preço: R$ 26,50
(232 págs.).
Texto Anterior: Após Paris, Rio celebra Itália Próximo Texto: O homem magro: O charme da literatura de Hammett Índice
|