São Paulo, sábado, 30 de março de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

FESTIVAL DE CURITIBA

PERSONALIDADE

Em Curitiba, poeta comenta "Auto dos Bons Tratos", prepara novo texto para julho e deseja vê-lo montado

Pignatari vai ao teatro e anuncia peça

VALMIR SANTOS
ENVIADO ESPECIAL A CURITIBA

Morador da capital paranaense há três anos, Décio Pignatari é um cidadão instigado pelas palavras e imagens tanto quanto o era nas paragens paulistas que habitou por décadas.
"Curitiba é uma cidade viciada em publicidade, toda moça sonha em ser top model e toda padaria cria um design gráfico para sua fachada", diz o poeta concretista e publicitário temporão Pignatari, 74, enquanto segura um potinho de jujubas distribuído ao público do festival por uma operadora de celular.
Sob a boina de capitão à la Hamingway e óculos de grau acentuados, signos que o descredenciam do anonimato nas ruas (muitos o saúdam, jovens lhe apresentam verdes versos), o também advogado, semiólogo, ensaísta e teórico da comunicação estava no saguão do teatro da Reitoria, a convite da Folha, para assistir à estréia nacional da montagem "Auto dos Bons Tratos", da paulista Cia. do Latão, quarta-feira passada.
É a segunda e última peça que ele confere na programação com cerca de 150 ao todo no 11º Festival de Teatro de Curitiba, incluídas as mostras Oficial e Fringe.
A primeira, "Sonho de Uma Noite de Verão", levada ao teatro Ópera de Arame pela Cia. de Dança de Belo Horizonte, sob direção de Gabriel Villela, não conseguiu prender sua atenção por mais de 20 minutos. "Se uma companhia de dança não tem controle sobre o som, não tem controle sobre o resto", afirma o poeta, que deixou o teatro, incomodado com o volume da trilha do espetáculo.
Resistiu até o final de "O Auto dos Bons Tratos", mas não poupa críticas. Diz que a Cia. do Latão tenta impor um discurso sobre a origem do autoritarismo no Brasil e se esquece de polir a interpretação. "Os atores não sabem falar andando, ficam heráldicos. Não há diálogos, mas discursos paralelos", afirma Pignatari.
Apesar da ressalvar que costuma ser muito crítico -"mas de vez em quando preciso fazer algo de bom trato"-, o poeta fundamenta sua concepção de teatro sobretudo em momentos como a fase de ator que viveu no início dos anos 50, quando integrava um grupo amador em Osasco (SP), "profundamente ideológico", no qual montou textos do italiano Luigi Pirandello.
Ou ainda na sessão de "A Alma Boa de Setsuan" que viu em Munique, Alemanha, pelo Berliner Ensemble, "quando o autor ainda era vivo". Trata-se da lendária companhia do alemão Bertolt Brecht.
"Tudo é voz", apalavra Pignatari. Ele diz que o ator brasileiro fala muito mal. "No cinema é um horror, no teatro é um horror. O ator brasileiro aprendeu a falar um pouco nas novelas da Globo, em que é ouvido claramente", afirma o poeta.
Para ele, um bom trabalho de voz permite nuanças como uma crítica social mais aguda a partir do modo como se fala em cena. Em "Pigmaleão", o inglês Bernard Shaw é um exemplo de dramaturgo que domina o verbo e o deseja ver potencializado na voz do intérprete.
Dramaturgia é um assunto caro a Pignatari. Ele já incursionou pelo teatro em "Aquelarre", uma "peça estranhíssima, que nem os amigos conseguem apreciar". O título, de origem basca, significa "campo do bode" e faz referência ao sabá das bruxas. "É uma paródia do ambiente universitário, das mulheres pretensiosas, estudantes de semiótica, mas também é uma sátira violenta, uma leitura piadística e psicanalítica do Brasil", afirma o concretista.
Não se tem notícia de que "Aquelarre" (incluída no livro de contos "O Rosto da Memória") tenha sido montada. "Não teve a mínima repercussão", consola-se Pignatari. Ele também já teve a experiência de criar um "teatro holograma", mas não surtiu o efeito esperado.
A mudança para Curitiba, que há dez anos abre o outono com um dos festivais mais importantes do país, fez com que o poeta se aproximasse mais do teatro, ainda que as visitas não sejam feitas com frequência na condição de espectador.
Até julho próximo, Pignatari promete concluir sua segunda peça. "Mais uma vez estou tentando, mas não posso adiantar a idéia. Já tenho as notas principais, só espero por aquele momento em que você se concentra e não abandona mais", diz.
Desta vez, porém, ele não quer que a história teoricamente destinada à cena seja condenada ao livro ou à gaveta. "Assim que terminar, vou mostrá-la aos amigos daqui de Curitiba e de São Paulo, gente como Antunes Filho, Antônio Fagundes e Antônio Abujamra, para que avaliem."
Décio Pignatari concebe o teatro como uma das artes mais tradicionais do Oriente e do Ocidente. Portanto, com igual terreno para experimentações que ele, um dos idealizadores do movimento de arte concreta no país no final dos anos 50, ao lado os irmãos Augusto e Haroldo de Campos, lida com mais desenvoltura na poesia.
"O teatro tem a singularidade de não poder ser substituído por outra mídia. É uma arte que depende do contato com o público, da voz do ator, do corpo, da interação viva", acena.


O jornalista Valmir Santos e o crítico Sergio Salvia Coelho viajam a convite da organização do 11º Festival de Teatro de Curitiba


Texto Anterior: "Norma": Atriz brilha em peça que recupera o teatral
Próximo Texto: Walter Salles: A militarização do cinema norte-americano
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.