São Paulo, sábado, 30 de março de 2002

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WALTER SALLES

A militarização do cinema norte-americano

-Eu não posso ficar sentado e permitir que a infiltração comunista, a subversão comunista, a conspiração comunista impurifiquem os nossos preciosos fluidos corporais.
- O sr. está falando de mortes em massa, general.
- Dez ou vinte milhões, nada além disso.
Corta para uma cena de outro filme:
- Os soldados inimigos têm leite desnatado nas veias em vez de sangue.
- Então é o leite mais avermelhado que eu já vi. As trincheiras estão empapadas dele, general."
O primeiro diálogo é de "Dr. Strangelove" ou "Como Aprendi a Parar de Me Preocupar e Amar a Bomba"; o segundo é de "Glória Manchada de Sangue" -ambos de Stanley Kubrick. "Dr. Stangelove" é uma sátira incisiva contra a corrida armamentista. "Glória..." desconstrói as questões da honra militar e do patriotismo. Houve um tempo em que o cinema norte-americano se permitia filmes assim. Não mais.
Os últimos lançamentos do cinema americano apontam em direção oposta. O maior sucesso do último mês nos EUA, "We Were Soldiers", mostra como dezenas de infelizes comandados por Mel Gibson podem matar por justa causa e morrer por uma causa justa. O mesmo raciocínio simplista é o ponto de partida de "Falcão Negro em Perigo", possivelmente uma das mais bem filmadas peças de propaganda política desde que Lenny Riefenstahl se aposentou.
Em um caso como no outro, não importa em que latitude, os soldados norte-americanos estão combatendo. A M-16 de Gibson cospe fogo contra centenas de norte-vietnamitas, que vão tombando como moscas. No filme de Ridley Scott, as metralhadoras abatem as mesmas centenas de corpos sem rosto, só que o massacre acontece na Somália.
Ambos os filmes procuram assemelhar as questões morais em jogo às da Segunda Guerra Mundial: o embate entre o bem e o mal. O saldo aparece nos créditos finais de "Falcão Negro em Perigo": 19 soldados americanos mortos (pelo bem), contra mil somalis abatidos. O fato de que esses últimos são chamados no decorrer do filme de "magrinhos" (skinnies) ajuda a tornar as intenções ainda mais claras. O inimigo, o outro, não tem voz nem vez. É apenas o alvo.
Nada de questionar o estamento militar, como Kubrick fez nos filmes já citados e repetiu em "Nascido para Matar". A tendência no cinema norte-americano que ganha as telas depois do 11 de setembro é mostrar que toda intervenção em solo alheio é justificada, e a guerra, inevitável e necessária. Nada muito diferente daquilo que vende Bush. Ou "A Voz da América", mais conhecida como CNN.
Sintomaticamente, até as projeções esquizofrênicas de "Uma Mente Brilhante" são militarizantes: Guerra Fria, ogivas nucleares, sacrifício pessoal para defender a pátria etc. Como também é interessante que, num filme que se preocupou em selecionar os aspectos mais digeríveis da vida de um personagem contraditório, aquilo que é de ordem bélica tenha ganho tanta importância.
A julgar pelos trailers nos cinemas, vem mais por aí. Matéria-prima é que não falta. Afinal, desde 1945, os EUA bombardearam ou invadiram a China (1945-1946, 1950-1953), a Coréia (1950-1953), a Guatemala (1954, 1967-1969), a Indonésia (1958), Cuba (1959-1960), o Congo Belga (1964), o Peru (1965), o Laos (1964-1973), o Vietnã (1961-1973), o Camboja (1969-1970), Granada (1983), o Panamá (1969), o Iraque (1991), o Sudão (1998) e o Afeganistão (2001-2002). Fala-se, neste momento, de um novo ataque ao Iraque. The show must go on.

P.S. - Fico sabendo do desaparecimento de Billy Wilder no fechamento desse artigo. Morreu um diretor extraordinário, que transitou com igual elegância em todos os gêneros cinematográficos. Uma história rápida: quando ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro com "Belle Époque", em 1994, o diretor espanhol Fernando Trueba agradeceu dizendo: "Eu não acredito em Deus, mas acredito em Billy Wilder". No dia seguinte, toca o telefone no quarto do seu hotel. "Aqui é Deus", ouve Trueba. Desde a última quinta-feira, o céu se tornou um lugar muito mais divertido.



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