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WALTER SALLES
A militarização do cinema norte-americano
-Eu não posso ficar
sentado e permitir que
a infiltração comunista, a subversão comunista, a conspiração comunista impurifiquem os nossos
preciosos fluidos corporais.
- O sr. está falando de mortes
em massa, general.
- Dez ou vinte milhões, nada
além disso.
Corta para uma cena de outro
filme:
- Os soldados inimigos têm leite desnatado nas veias em vez de
sangue.
- Então é o leite mais avermelhado que eu já vi. As trincheiras
estão empapadas dele, general."
O primeiro diálogo é de "Dr.
Strangelove" ou "Como Aprendi
a Parar de Me Preocupar e Amar
a Bomba"; o segundo é de "Glória
Manchada de Sangue" -ambos
de Stanley Kubrick. "Dr. Stangelove" é uma sátira incisiva contra
a corrida armamentista. "Glória..." desconstrói as questões da
honra militar e do patriotismo.
Houve um tempo em que o cinema norte-americano se permitia
filmes assim. Não mais.
Os últimos lançamentos do cinema americano apontam em direção oposta. O maior sucesso do
último mês nos EUA, "We Were
Soldiers", mostra como dezenas
de infelizes comandados por Mel
Gibson podem matar por justa
causa e morrer por uma causa
justa. O mesmo raciocínio simplista é o ponto de partida de
"Falcão Negro em Perigo", possivelmente uma das mais bem filmadas peças de propaganda política desde que Lenny Riefenstahl
se aposentou.
Em um caso como no outro, não
importa em que latitude, os soldados norte-americanos estão
combatendo. A M-16 de Gibson
cospe fogo contra centenas de
norte-vietnamitas, que vão tombando como moscas. No filme de
Ridley Scott, as metralhadoras
abatem as mesmas centenas de
corpos sem rosto, só que o massacre acontece na Somália.
Ambos os filmes procuram assemelhar as questões morais em jogo às da Segunda Guerra Mundial: o embate entre o bem e o
mal. O saldo aparece nos créditos
finais de "Falcão Negro em Perigo": 19 soldados americanos mortos (pelo bem), contra mil somalis
abatidos. O fato de que esses últimos são chamados no decorrer do
filme de "magrinhos" (skinnies)
ajuda a tornar as intenções ainda
mais claras. O inimigo, o outro,
não tem voz nem vez. É apenas o
alvo.
Nada de questionar o estamento militar, como Kubrick fez nos
filmes já citados e repetiu em
"Nascido para Matar". A tendência no cinema norte-americano
que ganha as telas depois do 11 de
setembro é mostrar que toda intervenção em solo alheio é justificada, e a guerra, inevitável e necessária. Nada muito diferente
daquilo que vende Bush. Ou "A
Voz da América", mais conhecida
como CNN.
Sintomaticamente, até as projeções esquizofrênicas de "Uma
Mente Brilhante" são militarizantes: Guerra Fria, ogivas nucleares, sacrifício pessoal para defender a pátria etc. Como também é interessante que, num filme que se preocupou em selecionar os aspectos mais digeríveis da
vida de um personagem contraditório, aquilo que é de ordem bélica tenha ganho tanta importância.
A julgar pelos trailers nos cinemas, vem mais por aí. Matéria-prima é que não falta. Afinal, desde 1945, os EUA bombardearam
ou invadiram a China (1945-1946, 1950-1953), a Coréia (1950-1953), a Guatemala (1954, 1967-1969), a Indonésia (1958), Cuba
(1959-1960), o Congo Belga
(1964), o Peru (1965), o Laos
(1964-1973), o Vietnã (1961-1973),
o Camboja (1969-1970), Granada
(1983), o Panamá (1969), o Iraque
(1991), o Sudão (1998) e o Afeganistão (2001-2002). Fala-se, neste
momento, de um novo ataque ao
Iraque. The show must go on.
P.S. - Fico sabendo do desaparecimento de Billy Wilder no fechamento desse artigo. Morreu um
diretor extraordinário, que transitou com igual elegância em todos os gêneros cinematográficos.
Uma história rápida: quando ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro com "Belle Époque", em
1994, o diretor espanhol Fernando Trueba agradeceu dizendo:
"Eu não acredito em Deus, mas
acredito em Billy Wilder". No dia
seguinte, toca o telefone no quarto do seu hotel. "Aqui é Deus", ouve Trueba. Desde a última quinta-feira, o céu se tornou um lugar
muito mais divertido.
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