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MARCELO COELHO
Barreiras do som
Todo mundo reclama do lixo
que recebe por e-mail: correntes da felicidade, abaixo-assinados diversos, anúncios para
aumentar o pênis ou diminuir o
peso. Passo um bom tempo apagando essas coisas do computador. Não é fácil, porque elas acabam indo parar numa pasta destinada às "mensagens excluídas".
E somente lá é que serão exterminadas, como é o destino dos excluídos em geral.
Na verdade, não me queixo.
Poucas coisas me dão tanto a ilusão de estar trabalhando, de estar
fazendo algo de útil, enquanto na
verdade perco tempo enrolando
no computador. O que me espanta é a monotonia desse tipo de poluição. Os produtos, as ofertas, os
apelos, os pedidos não variam
quase nunca.
Por isso me chamou a atenção,
outro dia, um e-mail anunciando
a chegada de um invento capaz
de revolucionar a vida de qualquer motorista. Trata-se de um
dispositivo eletrônico que, segundo o anúncio, faz "seu carro falar
com você".
Fico dispensado, assim, de verificar o nível do tanque de gasolina no mostrador. O carro, imagino, me avisará disso de viva voz.
Que mais? Até o xingamento
quem sabe eles incluam. "Abaixe
o farol, cretino." Ou a suavidade
daquele pedido, que tantas vezes
se vê escrito com o dedo nos carros
estacionados: "Lave-me, por favor".
Não tive muita curiosidade em
me informar sobre os recursos do
"phone-car" ou sabe-se lá que nome tem. Mas isso foi só o começo,
porque depois recebi um informe
para a imprensa a respeito de
uma feira de construção, que não
fui visitar, mas devia ter ido, uma
vez que lá iam apresentar... o banheiro falante!
Não, não era bem falante, embora o release afirmasse que sim.
Na verdade, o banheiro se mostra
obediente a comandos de voz. Todos os mecanismos de acionamento de água, "desde a descarga
até o chuveiro", mostram-se capazes de seguir as ordens do usuário, que poderá assim regular sem
esforço a temperatura ou o fluxo
da água, por exemplo.
No futuro, aliás, os banheiros
terminarão dispensando até mesmo esse e outros sistemas de intervenção sonora. "Sensores irão reconhecer a altura do visitante e
ajustar automaticamente bacia,
bidê e lavatório para melhor se
adaptar ao usuário que chega."
Parece "Minority Report", de
Spielberg, onde os outdoors reconheciam o passante e seus interesses de consumo.
Não estamos longe disso. Os sites de compras na internet se dirigem a nós pelo nome próprio,
lembram-se do que compramos
na última visita e sugerem o que
pode nos interessar desta vez. Já é
um tipo de diálogo superior ao
que mantemos com balconistas
humanos numa loja convencional, uma vez que a máquina (e
não o balconista) está dotada de
memória; e ter memória já é um
passo fundamental no rumo de
ter caráter, de ter personalidade,
de ter assunto, ter disposição para
trocar idéias com a gente.
Também são falantes as máquinas de estacionamento: "Bem-vindo ao shopping Tal e Tal. Pegue o seu tíquete e boas compras...". Que atraso de vida, em
comparação com isso, os caixas
do cinema multiplex alguns andares acima! Atrás de um vidro à
prova de tiros de escopeta, os funcionários se debatem com um microfonezinho em péssimo estado,
tentando avisar-nos de que não
há mais ingressos para aquela
sessão nem para nenhuma outra.
Melhor seria, penso, se vendessem as entradas com o tíquete de
estacionamento. Uma fila só -a
gente dentro do carro, conversando com ele, claro. Lá fora, imagino, engrossaria um pouco mais a
leva dos desempregados.
É nesse ponto que o dispositivo
do carro falante se junta com outro acessório bastante em voga, o
insulfilm -película que escurece
os vidros do carro, protegendo-nos do sol e de abordagens indesejadas. É uma blindagem visual.
Nietzsche afirmou que o ouvido
é o órgão do medo, no que provavelmente se inspirou em Plutarco,
para quem "nem as coisas visíveis, nem as que se saboreiam,
nem as tangíveis trazem arroubos, perturbações e terrores tais
como as que se apoderam da alma, irrompendo nela por meio da
audição de certos estrépitos, golpes e sons" ("Como Ouvir", ed.
Martins Fontes).
O rádio do carro e o walkman já
proporcionavam uma barreira
para os sons exteriores. O sistema
do automóvel falante faz mais do
que isso: força uma interação com
o usuário e dispensa-o, sem dúvida, de olhar para o painel. É mais
um passo com o objetivo de reduzir ao mínimo todo o nosso esforço de leitura -mesmo que de números, figuras ou flechinhas. O
que é muito cômodo, sem dúvida,
mas tem um sentido claro.
Se a audição é o lugar do medo,
talvez porque admita a escuridão
e a proximidade, o olhar é a mais
livre de nossas formas de percepção sensorial. Podemos fechar os
olhos, desviar a nossa vista, escolher um ângulo ou um detalhe em
detrimento de outro. O olhar sobre uma página de livro ou de revista tem uma liberdade que o
ouvido desconhece.
Mas isso já é passado. As telas
de TV e de computador nos hipnotizam com um brilho e um pisca-pisca que não percebemos
conscientemente. Nossa liberdade
física, no plano bem modesto dos
movimentos oculares, sofre indubitável e prazerosa limitação. Some-se a isso a sonorização de tudo -não só a dos carros, mas a
dos e-mails, por exemplo- e prevejo um futuro brilhante à nossa
frente. Desde que fechemos bem
os olhos.
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