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São Paulo, quarta-feira, 30 de abril de 2003

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MARCELO COELHO

Barreiras do som

Todo mundo reclama do lixo que recebe por e-mail: correntes da felicidade, abaixo-assinados diversos, anúncios para aumentar o pênis ou diminuir o peso. Passo um bom tempo apagando essas coisas do computador. Não é fácil, porque elas acabam indo parar numa pasta destinada às "mensagens excluídas". E somente lá é que serão exterminadas, como é o destino dos excluídos em geral.
Na verdade, não me queixo. Poucas coisas me dão tanto a ilusão de estar trabalhando, de estar fazendo algo de útil, enquanto na verdade perco tempo enrolando no computador. O que me espanta é a monotonia desse tipo de poluição. Os produtos, as ofertas, os apelos, os pedidos não variam quase nunca.
Por isso me chamou a atenção, outro dia, um e-mail anunciando a chegada de um invento capaz de revolucionar a vida de qualquer motorista. Trata-se de um dispositivo eletrônico que, segundo o anúncio, faz "seu carro falar com você".
Fico dispensado, assim, de verificar o nível do tanque de gasolina no mostrador. O carro, imagino, me avisará disso de viva voz. Que mais? Até o xingamento quem sabe eles incluam. "Abaixe o farol, cretino." Ou a suavidade daquele pedido, que tantas vezes se vê escrito com o dedo nos carros estacionados: "Lave-me, por favor".
Não tive muita curiosidade em me informar sobre os recursos do "phone-car" ou sabe-se lá que nome tem. Mas isso foi só o começo, porque depois recebi um informe para a imprensa a respeito de uma feira de construção, que não fui visitar, mas devia ter ido, uma vez que lá iam apresentar... o banheiro falante!
Não, não era bem falante, embora o release afirmasse que sim. Na verdade, o banheiro se mostra obediente a comandos de voz. Todos os mecanismos de acionamento de água, "desde a descarga até o chuveiro", mostram-se capazes de seguir as ordens do usuário, que poderá assim regular sem esforço a temperatura ou o fluxo da água, por exemplo.
No futuro, aliás, os banheiros terminarão dispensando até mesmo esse e outros sistemas de intervenção sonora. "Sensores irão reconhecer a altura do visitante e ajustar automaticamente bacia, bidê e lavatório para melhor se adaptar ao usuário que chega." Parece "Minority Report", de Spielberg, onde os outdoors reconheciam o passante e seus interesses de consumo.
Não estamos longe disso. Os sites de compras na internet se dirigem a nós pelo nome próprio, lembram-se do que compramos na última visita e sugerem o que pode nos interessar desta vez. Já é um tipo de diálogo superior ao que mantemos com balconistas humanos numa loja convencional, uma vez que a máquina (e não o balconista) está dotada de memória; e ter memória já é um passo fundamental no rumo de ter caráter, de ter personalidade, de ter assunto, ter disposição para trocar idéias com a gente.
Também são falantes as máquinas de estacionamento: "Bem-vindo ao shopping Tal e Tal. Pegue o seu tíquete e boas compras...". Que atraso de vida, em comparação com isso, os caixas do cinema multiplex alguns andares acima! Atrás de um vidro à prova de tiros de escopeta, os funcionários se debatem com um microfonezinho em péssimo estado, tentando avisar-nos de que não há mais ingressos para aquela sessão nem para nenhuma outra.
Melhor seria, penso, se vendessem as entradas com o tíquete de estacionamento. Uma fila só -a gente dentro do carro, conversando com ele, claro. Lá fora, imagino, engrossaria um pouco mais a leva dos desempregados.
É nesse ponto que o dispositivo do carro falante se junta com outro acessório bastante em voga, o insulfilm -película que escurece os vidros do carro, protegendo-nos do sol e de abordagens indesejadas. É uma blindagem visual.
Nietzsche afirmou que o ouvido é o órgão do medo, no que provavelmente se inspirou em Plutarco, para quem "nem as coisas visíveis, nem as que se saboreiam, nem as tangíveis trazem arroubos, perturbações e terrores tais como as que se apoderam da alma, irrompendo nela por meio da audição de certos estrépitos, golpes e sons" ("Como Ouvir", ed. Martins Fontes).
O rádio do carro e o walkman já proporcionavam uma barreira para os sons exteriores. O sistema do automóvel falante faz mais do que isso: força uma interação com o usuário e dispensa-o, sem dúvida, de olhar para o painel. É mais um passo com o objetivo de reduzir ao mínimo todo o nosso esforço de leitura -mesmo que de números, figuras ou flechinhas. O que é muito cômodo, sem dúvida, mas tem um sentido claro.
Se a audição é o lugar do medo, talvez porque admita a escuridão e a proximidade, o olhar é a mais livre de nossas formas de percepção sensorial. Podemos fechar os olhos, desviar a nossa vista, escolher um ângulo ou um detalhe em detrimento de outro. O olhar sobre uma página de livro ou de revista tem uma liberdade que o ouvido desconhece.
Mas isso já é passado. As telas de TV e de computador nos hipnotizam com um brilho e um pisca-pisca que não percebemos conscientemente. Nossa liberdade física, no plano bem modesto dos movimentos oculares, sofre indubitável e prazerosa limitação. Some-se a isso a sonorização de tudo -não só a dos carros, mas a dos e-mails, por exemplo- e prevejo um futuro brilhante à nossa frente. Desde que fechemos bem os olhos.


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