São Paulo, quinta-feira, 30 de maio de 2002

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ANÁLISE

Insuperável na lucidez através do humor

ROGÉRIO SGANZERLA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Questão central: o cinema contemporâneo ainda está quase completamente dessintonizado com a realidade de nossos tempos. Raros são os filmes realmente sintonizados com a realidade que os produziu.
Exceções evidentes? Sim, Billy Wilder (1906-2002) que o diga no céu, pois aqui o cineasta permaneceria de braços cruzados, enquanto calouros seriam reprovados no vestibular da surpresa: a eficácia humanística de suas investidas contra a sensibilidade do público.
Nesse sentido, era insuperável na lucidez através do humor. Wilder, ao lado dos também norte-americanos William Wyler (1902-1981) e Howard Hawks (1896-1977), foram os que mais bem exprimiram a desglamourização da violência de massa (leia-se guerra quente), incentivada pela mídia imediatista (como se vê no magnífico "A Montanha dos Sete Abutres", de 1951, protagonizado por Kirk Douglas) e redundando na miséria eletrônica que ainda hoje nos atordoa.
Cada imagem conta e permanece na memória coletiva do público mundial. Wilder pertencia à melhor linhagem do cinema americano, quase toda provinda de Viena para Hollywood. Eles foram os que mais bem consubstanciaram a solução entre forma e conteúdo de seus espetáculos reflexivos.
Com isso quero dizer que provinham da "escola de Lubitsch" [do cineasta alemão Ernst Lubitsch (1892-1947)". Com ironia, sarcasmo e uma leveza profunda, erotizou a platéia com filmes bem solucionados, a exemplo de "Testemunha de Acusação", em que Marlene Dietrich (1901-1992) faz dois papéis antagônicos, decisivos para a trama, em que todos os conflitos são postos em xeque nos últimos cinco minutos de duração do longa.
No entanto, para compreender seus filmes, não é necessário mais do que um espectador com Q.I. acima do sofrível.

Desordem tática
Driblando a política de estrelas dos grandes estúdios, Wilder também brindava a estupidez dos mesmos com seus filmes problematizantes, feitos para serem esquecidos no final da sessão contínua, numa desordem tática.
Quem esquece "Sabrina"? É possível olvidar o "Crepúsculo dos Deuses"? Aqui mesmo na Folha, o colunista Carlos Heitor Cony brindou o melhor dos filmes americanos, justamente uma denúncia da decadência daquele sistema.
Numa época de desmascaramento, quando praticamente se anulam todas as certezas anteriores e todos os caminhos levam à ambiguidade, também se multiplicam ameaças bombásticas à liberdade de opinião que envolveu o hemisfério Norte numa guerra perdida de antemão. Os filmes de guerra de Wilder levantam a discussão para níveis incontornáveis, humanizando a questão em vez de tentar transformar cinema de autor em videogame.
Apesar de humorista, Billy Wilder não brincava em serviço. Verdadeiro gênio profissional, foi um dos pilares da civilização da imagem em movimento, cujos segmentos de vida são para nós a própria vida capturada por uma vil mecânica que nos faz pensar com olhos e ouvidos livres.


Rogério Sganzerla é cineasta e diretor, entre outros, de "O Bandido da Luz Vermelha" (1968)



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