|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CRÍTICA
Clássico volta com sabor pré-feminista
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Com Billy Wilder, um músico, na Chicago de 1929, pode
muito bem acabar fuzilado numa
garagem por algum gângster.
Mas, se estiver travestido, tocando em uma orquestra feminina,
pode topar com Marilyn Monroe,
e não é impossível que ela se apaixone por você.
Coisas assim acontecem em
"Quanto Mais Quente Melhor", e
não é estranho que aconteçam.
Para Billy Wilder, a vida é feita de
acasos e contiguidades que podem desembocar em tragédias ou
comédias. No caso, estamos diante de uma comédia de 1959, um
dos trabalhos mais inspirados de
Marilyn, em todos os sentidos, e
será inesquecível vê-la andando
de costas numa estação ferroviária. O corpo parece ter amortecedores, observa Jack Lemmon.
Alguns segundos antes, aliás,
podemos ver Lemmon e Tony
Curtis na mesma plataforma tentando penosamente se equilibrar
sobre sapatos de saltos altos.
Como chegamos a esse ponto?
Após testemunharem o massacre
do Dia dos Namorados (ou do
Dia de São Valentim, conforme a
versão), os músicos Jack e Curtis
conseguem fugir. Topam fazer
parte de uma orquestra feminina
que vai à Flórida, acreditando resolver dois problemas: ir para longe de Chicago e arranjar emprego.
A solução engendrará novos
problemas. O primeiro: fingir que
são mulheres; o segundo: continuar a fingir que são mulheres
tendo Marilyn por perto. Daí surgirá a trama e, dela, os mal-entendidos que farão a comédia.
Esse resumo omite o que é provavelmente o centro do filme, que
é a troca de sexos, ou antes: de como a necessidade faz dois homens romperem esse interdito
que separa irremediavelmente os
mundos feminino e masculino.
Com maior ou menor clareza, é
um aspecto que atravessa toda a
comédia clássica. Lubitsch fez disso, não raro, a pedra de toque de
seus filmes. Woody Allen lançou
mão disso em "Todos Dizem Eu
te Amo" (embora com um viés
mais perverso: ele descobre as
preferências de Julia Roberts para
conquistá-la, violando os segredos da mulher na psicanálise).
De um modo ou de outro, essa
irredutibilidade entre os universos feminino e masculino determina nossa condição no mundo.
Rompê-la equivale a desencadear
forças até então desconhecidas
(daí o personagem de Lemmon se
acostumar tão bem ao papel de
mulher, ou quase mulher, já que
"ninguém é perfeito", como bem
lembra a clássica frase final).
Se é evidente que o longa traz de
contrabando a homossexualidade (Lemmon e Curtis, no início,
não lembram um casal, com suas
brigas, reconciliações etc.?), revistada, essa comédia tem um sabor
pré-feminista incontestável, pois,
quando os dois músicos se vestem
de mulher, conhecerão, entre outras, a experiência do assédio.
É possível que o espectador recém-chegado, habituado ao andamento de videoclipe de tantos
filmes, se espante com o tempo
que Wilder leva para preparar sua
intriga. Um pouco de paciência,
no caso, compensará: do momento em que a trama se desencadeia
será fácil entender porque os roteiros em Hollywood eram tão
melhores há algum tempo.
Quanto Mais Quente Melhor
Some Like It Hot
Direção: Billy Wilder
Produção: EUA, 1959
Quando: a partir de hoje no Cinesesc
Texto Anterior: Análise: Insuperável na lucidez através do humor Próximo Texto: Mônica Bergamo Índice
|