São Paulo, quinta-feira, 30 de maio de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CRÍTICA

Clássico volta com sabor pré-feminista

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Com Billy Wilder, um músico, na Chicago de 1929, pode muito bem acabar fuzilado numa garagem por algum gângster. Mas, se estiver travestido, tocando em uma orquestra feminina, pode topar com Marilyn Monroe, e não é impossível que ela se apaixone por você.
Coisas assim acontecem em "Quanto Mais Quente Melhor", e não é estranho que aconteçam. Para Billy Wilder, a vida é feita de acasos e contiguidades que podem desembocar em tragédias ou comédias. No caso, estamos diante de uma comédia de 1959, um dos trabalhos mais inspirados de Marilyn, em todos os sentidos, e será inesquecível vê-la andando de costas numa estação ferroviária. O corpo parece ter amortecedores, observa Jack Lemmon.
Alguns segundos antes, aliás, podemos ver Lemmon e Tony Curtis na mesma plataforma tentando penosamente se equilibrar sobre sapatos de saltos altos.
Como chegamos a esse ponto? Após testemunharem o massacre do Dia dos Namorados (ou do Dia de São Valentim, conforme a versão), os músicos Jack e Curtis conseguem fugir. Topam fazer parte de uma orquestra feminina que vai à Flórida, acreditando resolver dois problemas: ir para longe de Chicago e arranjar emprego.
A solução engendrará novos problemas. O primeiro: fingir que são mulheres; o segundo: continuar a fingir que são mulheres tendo Marilyn por perto. Daí surgirá a trama e, dela, os mal-entendidos que farão a comédia.
Esse resumo omite o que é provavelmente o centro do filme, que é a troca de sexos, ou antes: de como a necessidade faz dois homens romperem esse interdito que separa irremediavelmente os mundos feminino e masculino.
Com maior ou menor clareza, é um aspecto que atravessa toda a comédia clássica. Lubitsch fez disso, não raro, a pedra de toque de seus filmes. Woody Allen lançou mão disso em "Todos Dizem Eu te Amo" (embora com um viés mais perverso: ele descobre as preferências de Julia Roberts para conquistá-la, violando os segredos da mulher na psicanálise).
De um modo ou de outro, essa irredutibilidade entre os universos feminino e masculino determina nossa condição no mundo. Rompê-la equivale a desencadear forças até então desconhecidas (daí o personagem de Lemmon se acostumar tão bem ao papel de mulher, ou quase mulher, já que "ninguém é perfeito", como bem lembra a clássica frase final).
Se é evidente que o longa traz de contrabando a homossexualidade (Lemmon e Curtis, no início, não lembram um casal, com suas brigas, reconciliações etc.?), revistada, essa comédia tem um sabor pré-feminista incontestável, pois, quando os dois músicos se vestem de mulher, conhecerão, entre outras, a experiência do assédio.
É possível que o espectador recém-chegado, habituado ao andamento de videoclipe de tantos filmes, se espante com o tempo que Wilder leva para preparar sua intriga. Um pouco de paciência, no caso, compensará: do momento em que a trama se desencadeia será fácil entender porque os roteiros em Hollywood eram tão melhores há algum tempo.


Quanto Mais Quente Melhor
Some Like It Hot
    
Direção: Billy Wilder
Produção: EUA, 1959
Quando: a partir de hoje no Cinesesc




Texto Anterior: Análise: Insuperável na lucidez através do humor
Próximo Texto: Mônica Bergamo
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.