São Paulo, quinta-feira, 30 de maio de 2002

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ARTIGO

Neschling e a TV Cultura, uma fundação pública

SAMUEL MAC DOWELL DE FIGUEIREDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A Fundação Padre Anchieta, que explora a rádio e a televisão Cultura, é uma fundação pública. Foi constituída por ato do governo do Estado, autorizado pela lei estadual 9.849, de 1967.
O Governo do Estado a constituiu para dar curso à política pública de educação e cultura, através do rádio e da televisão, utilizando para tanto, então, um órgão da sua administração indireta. Afora o casarão da avenida Faria Lima, que recebeu por doação da sra. Renata Crespi e hoje está cedido ao também público Museu da Casa Brasileira, todos os seus recursos financeiros, desde o primeiro momento da sua existência e por todos os exercícios seguintes, foram e continuam sendo extraídos do Orçamento do Estado.
Desses recursos orçamentários públicos se excluem, tão-somente, as receitas próprias de publicidade, venda de produções e patrocínios. Como entidade pública, está sujeita à lei de licitações e ao controle do Tribunal de Contas, assim como seus contratos não são nem podem ser sigilosos.
A afirmação de que a Fundação Padre Anchieta é uma instituição privada, inscrita em seu próprio estatuto, contraria os atos oficiais da sua constituição, contraria os fatos e contraria a legislação paulista, que a inseriu, como não poderia deixar de ser, entre as entidades da administração descentralizada do Estado. Chamar de público o que é privado é afirmação sem valor e que tem significado equivalente ao de pendurar uma placa no pescoço de um rinoceronte com a inscrição "camelo"; ou com a inscrição "propriedade privada" no Palácio dos Bandeirantes. Nem o rinoceronte virará camelo, nem se verá um "shopping center" no palácio.
Nem por isso há qualquer ilegalidade na contratação do maestro John Neschling para a Orquestra Sinfônica do Estado, a Osesp, através da Fundação Padre Anchieta. Equivocado, apenas, é o entendimento de que essa contratação pode ser mantida em sigilo, porque os contratos públicos, em regra, não podem ser objeto de tal reserva. De resto, trata-se de uma decisão administrativa, cujo mérito e oportunidade são de avaliação exclusiva do administrador.
Se a questão for medir esse mérito, entretanto, será suficiente considerar que a construção da Sala São Paulo e o excepcional desenvolvimento da Osesp ofereceram à cidade condições específicas de manifestação cultural, no campo da música, que não encontra precedente em nosso país. À elevação do nível artístico que assegura, soma-se ao seu caráter de permanência anos e, talvez, séculos adiante. A contribuição que oferece ao desenvolvimento cultural e educacional não é apenas importante, mas também indiscutível: os templos musicais de inúmeras cidades do mundo são objeto de admiração e, antes, de inveja da nossa parte; e cumprirão, sempre, o papel indireto e complementar de estimular a criação de empregos, de gerar atividade cultural e econômica e, no caso particular da Sala São Paulo, de contribuir para a valorização urbanística da cidade.
Quanto à contratação do maestro John Neschling, ela resultou de uma escolha que a caracteriza, segundo a lei de licitações, como uma contratação singular -porque a pessoa que se desejava contratar, fosse por sua qualificação artística, pela notoriedade dessa qualificação ou pela sua identificação com o projeto de montar, ensaiar, criar repertório e reger a orquestra, não poderia ser selecionada através de uma licitação de "melhor preço", que sujeitaria a organização e regência da orquestra a uma solução aleatória que levaria de roldão, com certeza, todo o investimento realizado com a própria Sala São Paulo.
O custo da contratação de Neschling, goste-se ou não disso, só podia ser medido em face do mercado em que a qualidade buscada podia ser encontrada; esse custo não está sujeito à crítica quanto ao seu valor absoluto, mesmo porque não é sustentado por verbas do orçamento público, e sim por recursos próprios gerados pelo mecanismo, como as vendas de assinaturas e ingressos e patrocínios. Esse aspecto também afasta a discussão sobre a prioridade do investimento, porque ele não substituiu ou preteriu qualquer outro investimento público, pela dupla razão de ser um investimento que ativa a geração de recursos, e não o contrário, e de possuir razões próprias e suficientes para a sua implementação.
A discussão sobre o tema é precipitada e prejudicada pela desinformação -quanto à falsíssima natureza privada da Fundação Padre Anchieta e ao incabível sigilo do contrato- e pela falta de percepção do valor da criação da sala e da performance da orquestra, tanto em termos culturais e sociais como de administração da coisa pública.
O estágio de interpretação musical que a Osesp alcançou, em obras como a "Sagração da Primavera" e "Salomé", diz mais sobre o assunto do que procurar irregularidades onde elas não existem. Ele será por certo sucedido por Neschling na determinação de tirar as partituras brasileiras das gavetas e produzir uma extensa obra fonográfica. Com dinheiro arrecadado aqui sim do setor privado, como acontece em Nova York, em Viena e demais lugares onde a cultura é desenvolvida com base no esforço conjunto da sociedade.


Samuel Mac Dowell de Figueiredo é advogado, sócio do escritório Rodrigues Barbosa Mac Dowell de Figueiredo - Advogados



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