São Paulo, quinta-feira, 30 de maio de 2002

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CINEMA/ESTRÉIAS

"ABC ÁFRICA"

Olhar direto do cineasta iraniano faz ensaio-documento com a realidade dos órfãos da Aids em Uganda

Kiarostami mergulha no coração das trevas

CÁSSIO STARLING CARLOS
EDITOR DO FOLHATEEN

"ABC África", de Abbas Kiarostami, é um ensaio-documento sobre órfãos de vítimas da Aids em Uganda. O projeto assume desde a primeira cena uma espécie de ultratransparência incomum no cinema.
O primeiro plano mostra um fax enviado pelo Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola no qual se convida o diretor iraniano para mostrar o trabalho feito pela organização Esforços das Mulheres de Uganda para Salvar Órfãos.
Com filmes como "Onde Fica a Casa do Meu Amigo" e "E a Vida Continua" em seu currículo, Kiarostami era o melhor dos grandes diretores talhados para realizar esse projeto prioritariamente humanitário, sobretudo por sua capacidade de captar dramas da infância.
Em "ABC África", vemos Kiarostami desembarcar em Kampala com uma equipe mínima, duas câmeras de vídeo digital, um projeto na mão e nenhuma idéia preconcebida na cabeça.
Suas visitas a aldeias devastadas pela Aids, os órfãos vagando em ruas miseráveis, na escola ao ar livre, as viúvas das vítimas, um raro homem recolhendo o cadáver de um filho no hospital, tudo é captado de modo bruto, evitando encenações desvirtuadoras, bem ao gosto do mestre iraniano.
É esse olhar direto, refém da intensidade daquilo que mostra, que aos poucos ganha corpo e dá ao espectador a certeza de estar diante de um objeto cinematográfico admirável.
Ao contrário do turista, que não consegue captar dos lugares por onde passa nada senão seus clichês, Abbas Kiarostami filma como um viajante, fazendo anotações em um caderno, o que aos poucos se constitui em um aprendizado, um "ABC África".
A solução é mais que adequada, pois assim se escapa do apelo emocional forçado. Quando registra a dor, as mortes, a miséria, Kiarostami não as reitera com o tom da denúncia. O fato já é eloquente. À imagem não se sobrepõe nenhum comentário em "off". As crianças, por exemplo, saltam diante da câmera, cantam e dançam, mas à imagem delas não se acrescenta nenhum discurso. Mostrá-las já basta como revelação do genocídio em silêncio que está em marcha.

Trevas
Enquanto isso, a igreja veta imagens de divulgação de preservativos em um esforço quixotesco de defesa da virgindade como única forma de deter o avanço da epidemia. Diante do slogan, recolhe-se mais um cadáver.
Nesse mergulho no coração das trevas, uma sequência pelo menos revela-se impressionante. Nela, a equipe encontra-se em um hotel onde à meia-noite apagam-se as luzes. Em meio ao breu, apenas o som serve de índice do filmado. Até que os raios de uma tempestade irrompem e restituem o visível, mostrando que aquela é uma tragédia de proporções divinas. Naquele momento exato, o grau zero do documento atinge o seu ponto máximo de significação.


ABC África
ABC Africa
    
Direção: Abbas Kiarostami
Produção: Irã, 2001
Quando: a partir de hoje no Frei Caneca Unibanco Arteplex




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