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CINEMA/ESTRÉIAS
"ABC ÁFRICA"
Olhar direto do cineasta iraniano faz ensaio-documento com a realidade dos órfãos da Aids em Uganda
Kiarostami mergulha no coração das trevas
CÁSSIO STARLING CARLOS
EDITOR DO FOLHATEEN
"ABC África", de Abbas
Kiarostami, é um ensaio-documento sobre órfãos de vítimas da Aids em Uganda. O projeto assume desde a primeira cena
uma espécie de ultratransparência incomum no cinema.
O primeiro plano mostra um
fax enviado pelo Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola no qual se convida o diretor
iraniano para mostrar o trabalho
feito pela organização Esforços
das Mulheres de Uganda para Salvar Órfãos.
Com filmes como "Onde Fica a
Casa do Meu Amigo" e "E a Vida
Continua" em seu currículo, Kiarostami era o melhor dos grandes
diretores talhados para realizar
esse projeto prioritariamente humanitário, sobretudo por sua capacidade de captar dramas da infância.
Em "ABC África", vemos Kiarostami desembarcar em Kampala com uma equipe mínima, duas
câmeras de vídeo digital, um projeto na mão e nenhuma idéia preconcebida na cabeça.
Suas visitas a aldeias devastadas
pela Aids, os órfãos vagando em
ruas miseráveis, na escola ao ar livre, as viúvas das vítimas, um raro
homem recolhendo o cadáver de
um filho no hospital, tudo é captado de modo bruto, evitando encenações desvirtuadoras, bem ao
gosto do mestre iraniano.
É esse olhar direto, refém da intensidade daquilo que mostra,
que aos poucos ganha corpo e dá
ao espectador a certeza de estar
diante de um objeto cinematográfico admirável.
Ao contrário do turista, que não
consegue captar dos lugares por
onde passa nada senão seus clichês, Abbas Kiarostami filma como um viajante, fazendo anotações em um caderno, o que aos
poucos se constitui em um aprendizado, um "ABC África".
A solução é mais que adequada,
pois assim se escapa do apelo
emocional forçado. Quando registra a dor, as mortes, a miséria,
Kiarostami não as reitera com o
tom da denúncia. O fato já é eloquente. À imagem não se sobrepõe nenhum comentário em
"off". As crianças, por exemplo,
saltam diante da câmera, cantam
e dançam, mas à imagem delas
não se acrescenta nenhum discurso. Mostrá-las já basta como revelação do genocídio em silêncio
que está em marcha.
Trevas
Enquanto isso, a igreja veta imagens de divulgação de preservativos em um esforço quixotesco de
defesa da virgindade como única
forma de deter o avanço da epidemia. Diante do slogan, recolhe-se
mais um cadáver.
Nesse mergulho no coração das
trevas, uma sequência pelo menos revela-se impressionante. Nela, a equipe encontra-se em um
hotel onde à meia-noite apagam-se as luzes. Em meio ao breu, apenas o som serve de índice do filmado. Até que os raios de uma
tempestade irrompem e restituem o visível, mostrando que
aquela é uma tragédia de proporções divinas. Naquele momento
exato, o grau zero do documento
atinge o seu ponto máximo de significação.
ABC África
ABC Africa
Direção: Abbas Kiarostami
Produção: Irã, 2001
Quando: a partir de hoje no Frei Caneca
Unibanco Arteplex
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