São Paulo, quinta-feira, 30 de maio de 2002

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"O MISTÉRIO DA LIBÉLULA"

Filme transforma esquema de investigação em ofício de fé

CRÍTICO DA FOLHA

Kevin Costner é o doutor Joe Darrow, que se vê duplamente enviuvado quando um acidente no interior da Venezuela amazônica acaba por vitimar a sua mulher, uma idealista médica da Cruz Vermelha, que estava grávida.
Decidido a trocar a dor do luto pelo cansaço, o viúvo se põe a trabalhar obsessivamente. Mas, além de lhe trazer reminiscências indesejadas, o hospital, onde sua mulher também atendia, começa a lhe ameaçar a razão. Nele, o doutor Darrow, sujeito cético e ateu, passa a vivenciar, um tanto contrariado, experiências extramundanas.
É assim que "O Mistério da Libélula" começa a se configurar como um filme (cristão) de conversão, ainda que devidamente enquadrado nos limites de seu gênero, o thriller sobrenatural. É, portanto, um "filme de conversão" ao estilo leigo hollywoodiano, em que o protagonista deve se impor sobre o mistério, resolvê-lo e não, à maneira das conversões rossellinianas, ser simplesmente abatido por ele.
No cinema cristão moderno de Rossellini (e de Bresson), a conversão vem de uma revelação experimentada pelos protagonistas sem conhecimento de causa e de forma necessariamente repentina e brutal. Na fórmula clássica a que "O Mistério da Libélula" recorre ordinariamente, a conversão não difere de um processo investigativo, e o mistério místico nunca deixa de ser um "segredo atrás da porta" que o protagonista deve desvendar e elucidar.
O protagonista prende o espectador na eterna promessa de "mais a ver" das imagens ao se embrenhar numa investigação em que deve sempre superar obstáculos e transpor balizas.
No caso, as explicações científicas que os colegas de Costner lhe dão para os tais fenômenos extrasensoriais e as ponderações da vizinha encarnada por Kathy Bates funcionam como obstáculos -obstáculos da razão à livre fruição da crença. E os conselhos espirituais dados pela freira interpretada por Linda Hunt funcionam como balizas.
Quanto mais aumenta a crença de Costner na possibilidade de sua mulher estar lhe mandando mensagens do além, mais ele se aproxima, efetivamente, da solução do mistério em questão. A revelação mística não pode se dar aqui sem uma racionalização investigativa, sem uma elucidação.
Ao recorrer a esse esquema clássico do thriller, "O Mistério da Libélula" tenta talvez conciliar, à moda antiga de Hollywood, a mensagem, o "ofício de fé" do filme aos interesses comerciais da produção, tornando-se duplamente condenável. Moralmente, por explorar e traficar (ainda uma vez) a crença. Comercialmente, por não revigorar esse desgastado esquema com a mínima sutileza ou inteligência, por não "pegar", enfim.
(TIAGO MATA MACHADO)


O Mistério da Libélula
Dragonfly
 
Direção: Tom Shadyac
Produção: EUA, 2002
Com: Kevin Costner, Joe Morton, Ron Rifkin, Linda Hunt
Quando: a partir de hoje nos cines Central Plaza, SP Market, Villa-Lobos, Eldorado, Metrô Santa Cruz, Interlar Aricanduva e circuito




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