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CONTARDO CALLIGARIS
Populismo americano
Estréia hoje, no Brasil, "Um
Ato de Coragem". Nos EUA,
o grande público adorou, e muitos críticos não gostaram.
O filme conta a história de John
Q. (Denzel Washington), cujo filho precisa de um transplante de
coração. Infelizmente, John situa-se numa zona cinzenta da sociedade americana: ele não é miserável (portanto não tem direito à
assistência médica gratuita), mas
seu emprego precário garante
apenas um seguro de saúde limitado. Conclusão: ninguém quer
pagar a operação que salvaria a
vida do menino. Quem não recorreria a atos extremos? Garanto
que os espectadores torcerão por
John.
É difícil que a situação do filme
aconteça nos EUA: alguma entidade filantrópica pagaria a conta. Mas isso não impediu o sucesso de "Um Ato de Coragem". Pois,
há tempo, sobretudo entre os menos favorecidos, vinga um protesto indignado contra as seguradoras que gerenciam o sistema de
saúde, apitando mais do que os
próprios médicos.
Ao comentar o sucesso do filme,
alguns críticos arrebitaram o nariz e salientaram a importância,
no cinema americano, de um filão populista: filmes feitos para
confirmar e bajular as idéias e os
sentimentos populares estabelecidos. Nessa ocasião, D. Denby, na
"New Yorker" (4/3/02), propôs
uma distinção entre dois populismos: de esquerda e de direita.
O populismo americano de esquerda exaltaria o pequeno indivíduo contra a prepotência dos
grandes complexos administrativos, industriais e políticos. Por
exemplo, "Um Ato de Coragem"
apresenta a luta do trabalhador
americano contra o sistema de
saúde. "Erin Brockovich: Uma
Mulher de Talento" (Oscar para
Julia Roberts) era o grito de justiça dos humildes envenenados pela indústria química. Mais recentemente, "Uma Lição de Amor"
apresentou uma dinâmica parecida: para manter a guarda da filha, um pai com uma deficiência
mental média (Sean Penn) enfrenta o poderoso Departamento
de Serviços Sociais, que sempre
sabe qual é o "melhor interesse"
das crianças (sobretudo quando
os pais da dita criança são pobres
e não são assistidos por um advogado competente).
O populismo de direita seria
exemplificado pelas histórias de
cidadãos vigilantes, que fazem
justiça com suas mãos. O último
(e fracassado) filme com Schwarzenegger, "Efeito Colateral", é um
exemplo: um bombeiro, sozinho,
vinga filho e mulher assassinados
num atentado terrorista. O esquema é clássico: pense em todos
os filmes em que Charles Bronson
sai matando criminosos porque a
polícia tem o rabo preso. Ou pense
nas aventuras do inspetor Harry
Callahan (Clint Eastwood), que
se ergue contra a corrupção de
seus colegas.
Em suma, o populismo de "Um
Ato de Coragem" sonharia com o
indivíduo opondo-se aos poderosos (revolta de esquerda). O populismo dos vigilantes sonharia com
o indivíduo assumindo as funções
do Estado (atitude autoritária e,
portanto, de direita).
Mas a fronteira entre as duas
categorias é tênue. Abundam os
filmes difíceis de situar com clareza. Veja, por exemplo, "Rambo
Programado para Matar" (o primeiro da série e o único que vale a
pena): é populista de esquerda ou
de direita?
É banal que intelectuais bem
pensantes tentem aplicar à cultura americana categorias interpretativas que fazem sentido na Europa ou na América do Sul, mas
que são pouco pertinentes nos
EUA. A diferença entre populismo de direita e populismo de esquerda talvez seja uma dessas
tentativas, pois, no mínimo, é necessário reconhecer que, nos EUA,
esses dois populismos, pretensamente opostos, alegram o mesmo
povo.
Há uma maneira simples de conhecer o público de um filme. Em
regra, nos EUA, na estréia, os filmes são exibidos num grande número de salas. Quando a receita
do dia fica abaixo de um valor determinado, as salas interrompem
a programação. Para conhecer
aproximadamente a composição
do público que gosta de um filme,
observa-se quais são (e onde são
localizadas) as salas que continuam programando o filme em
fim de carreira.
"Um Ato de Coragem", depois
do ímpeto inicial, sobreviveu um
bom tempo nos bairros periféricos
de pequena classe média. Mesma
coisa para "Uma Lição de Amor".
Ora, as salas desses bairros são
aquelas onde também sobrevivem os filmes populistas supostamente de direita. O vigilante
"Efeito Colateral" durou pouco
nas salas centrais, mas fez sua
carreira nas mesmas salas de periferia onde mais viveram "Um
Ato de Coragem" e "Uma Lição
de Amor", filmes populistas ditos
de esquerda.
Em suma, os pretensos dois populismos, de esquerda e de direita, encontram as graças de um
público só. Não deve surpreender
que os mesmos espectadores se
deleitem com Schwarzenegger vigilante ou com John Q. e Erin
Brockovich, pois esses filmes têm
algo em comum: são epopéias do
indivíduo.
À condição de esquecer categorias culturais importadas, é fácil
reconhecer que há um denominador comum em todos os sonhos
americanos: a luta do homem sozinho, seja ela contra quem for.
Lisonjear a ideologia popular, ser
populista, nos EUA, significa
exaltar a autoconfiança do indivíduo. Em qualquer circunstância.
ccalligari@uol.com.br
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